6 de fevereiro de 2018

Um Ensaio Após o Outro: Lendo Ursula Le Guin



O falecimento de Ursula Le Guin, mês passado, fez com que eu saísse à cata de livros dela para ler. Já tinha experiência com sua fantasia e sua ficção científica e estava interessada, especificamente, nos livros de ensaios, nos quais ela escreve sobre o trabalho do escritor, sobre a necessidade e a função da literatura e da fantasia em tempos modernos.

Li ano passado o excelente Words are My Matter - tendo traduzido o primeiro texto da coletânea, Manual de Instruções, para o blog -, que junta introduções e resenhas de livros, além de ensaios, todos produzidos entre 2000 e 2016. Neles, Le Guin escreve de forma clara, apaixonada e bem humorada, mas também bastante incisiva quando necessário. Ela também não poupa críticas quando essas são necessárias, e nem foge de temas espinhosos, abraçando a bandeira do feminismo e da tolerância. Aliás, gostei bastante de sua defesa sobre literatura de gênero - especialmente a ficção científica -, muitas vezes escanteada pela crítica especializada como uma espécie de subliteratura.

Algum dia, ainda hei de traduzir outros capítulos deste livro, especialmente os que falam de gênero literário e ‘literatura séria’, já que não parece haver previsão ou interesse em que o livro saia em português...
There are many bad books. There are no bad genres. Of course there are genres that are unappealing to individual readers. A reader who liked or valued all kinds of narrative equally would be undiscriminating to the point of imbecility. Some people honestly can’t read fantasy with any pleasure. I honestly can’t read porn, horror, or most political thrillers with pleasure. I have friends who cannot read any fiction with pleasure; they need what they can consider or pretend to be facts. These differences point, again, to the underlying validity of the concept of literary genre. But they do not justify any judgment of literature by genre.
- Words are my Matter
Dessa feita, comecei com No Time to Spare, publicado ano passado, uma coletânea de textos que apareceram originalmente no blog da própria Le Guin, num tom bem mais informal e pessoal. Ela começa falando sobre a inspiração para iniciar seu próprio blog - José Saramago -, sobre envelhecer (ela já passara dos oitenta quando começou o blog), sobre pessoas que passaram por sua vida e deixaram suas marcas, sobre viagens, sobre suas neuroses em busca do significado exato de uma palavra, sobre o uso de blasfêmias e palavrões na escrita, sobre música, sobre seu gato…

Quando tento pensar em comparações, penso que ler No Time to Spare é como ser convidado a vislumbrar o que existe por trás da cortina do mágico e descobrir o quão prosaica é sua intimidade e o quanto isso nos aproxima dele.
Old age generally involves pain and danger and inevitably ends in death. The acceptance of that takes courage. Courage deserves respect. - No Time to Spare
Continuei minha empreitada com Dancing at the Edge of the World, com tom mais formal (mas só um pouco), indo mais ou menos na mesma linha de Words are my Matter (ele é mais antigo, então eu deveria dizer que foi Dancing at the Edge of the World que inspirou aquele, mas eu o li por último, então…). Publicado originalmente em 1989, o interessante dessa coletânea é que os textos são apresentados de forma cronológica, indo de 1976 a 1988, e é possível enxergar a evolução da forma como Le Guin compreendia sua obra e o ofício de escrever.

Tocou-me nesse livro a coragem da autora de se expor, inclusive para falar da questão do aborto que fez quando adolescente. Eu já tinha visto textos dela sobre o assunto, mas o ensaio neste livro, datado de 1982, pareceu-me o mais incisivo.
What was it like, in the Dark Ages when abortion was a crime, for the girl whose dad couldn’t borrow cash, as my dad could? What was it like for the girl who couldn’t even tell her dad, because he would go crazy with shame and rage? Who couldn’t tell her mother? Who had to go alone to that filthy room and put herself body and soul into the hands of a professional criminal?–because that is what every doctor who did an abortion was, whether he was an extortionist or an idealist. You know what it was like for her. You know and I know; that is why we are here. We are not going back to the Dark Ages. We are not going to let anybody in this country have that kind of power over any girl or woman. There are great powers, outside the government and in it, trying to legislate the return of darkness. We are not great powers. But we are the light. Nobody can put us out. - Dancing at the Edge of the World
Ao terminar Dancing at the Edge of the World tentei imediatamente emendar Steering the Craft: A Twenty-First-Century Guide to Sailing the Sea of Story, mas aí tive de puxar o freio. Esse último não é um livro de ensaios, mas uma compilação das aulas de um workshop organizado por Le Guin para escritores, com explicações, exemplos e exercícios de cada tópico que aborda. É um livro mais técnico, mais direcionado, nem por isso menos saboroso, já que não se dispensa o humor ao mesmo tempo em que dá seus conselhos. Steering the Craft preocupa-se com a forma - pontuação e estrutura das frases, o som das palavras, o ritmo da narrativa -, sem perder de vista, contudo, a importância do conteúdo.
Morality and grammar are related. Human beings live by the word. Socrates said, “The misuse of language induces evil in the soul.” I’ve had that sentence pinned up over my desk for a long time. Lying is the deliberate misuse of language. But language misused through “mere” ignorance or carelessness breeds half-truths, misunderstandings, and lies. - Steering the Craft
Fui do começo ao final e depois retornei para começar a pensar nos exercícios que ela propõe. Enquanto isso, comecei outro volume de ensaios, desta feita o Meditation on Middle-Earth, e mais uma vez encontrei a Le Guin - entre vários outros autores (tem o Pratchett também!) - com um capítulo sobre ritmo na prosa e nos escritos de Tolkien, sobre ler em voz alta e encontrar musicalidade e poesia na narrativa.

Le Guin nunca tenta se apresentar como menos ou mais do que é, ou se omitir, ou se proteger. Coragem, empatia, humor, determinação, tudo isso é visível no legado que ela nos deixou. É algo que vai muito além da escritora genial que enfrentou paradigmas e preconceitos em livros incomparáveis: o que ficam são sua humanidade, generosidade e dignidade, qualidades que transparecem em tudo o que nos deixou e que deixam sua marca na Literatura e, também, em nossas próprias histórias.

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A Coruja


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