4 de janeiro de 2018

Projeto Pratchett: Homens de Armas

"Se você tem que encarar a extensão de uma flecha pelo lado errado, se um homem tem você inteiramente à sua mercê, então torça com toda força para que este homem seja um homem mau. Porque o mal gosta de poder, poder sobre as pessoas, e ele quer vê-lo com medo. Querem que você saiba que vai morrer. Então eles vão falar. Vão se gabar. Vão observá-lo se contorcer. Vão adiar o momento do assassinato como outro homem adiaria um bom charuto.

Então torça com toda a força para que seu captor seja um homem mau. Um homem bom vai matá-lo sem quase dizer uma palavra."
Homens de Armas é o segundo volume das narrativas acerca da Vigilância Noturna na série Discworld, seguindo os acontecimentos de Guardas, Guardas. Capitão Samuel Vimes está prestes a se casar e deixar a Guarda - e, no processo, torna-se o homem mais rico de Ankh-Morpork. A Guarda, por sua vez, está crescendo, tendo recebido em suas fileiras um troll, um anão e uma mulher, como parte de ações afirmativas implantadas pelo Patrício frente ao processo de imigração e conflitos étnicos que estão surgindo na cidade. Os novos recrutas são recebidos pelo Sargento Colon, o Cabo Nobbs - dois veteranos da corporação - e o Cabo Cenoura, um anão de dois metros de altura cujo carisma poderia bem ser classificado como arma de controle de multidões.

Quando primeiro conhecemos esses personagens, em Guardas, Guardas, a Vigilância Noturna era uma instituição fracassada, a grande piada da cidade. É a chegada de Cenoura (que acabara de descobrir que, na verdade, era humano, tendo sido adotado por uma família de anões quando bebê), com seu otimismo, sua honestidade e seu desejo de fazer o melhor possível, que passa a inspirar os outros; e acorda Vimes para a necessidade de se impor, de fazer sua opinião ser ouvida, e a lei, respeitada. Vimes e Cenoura são uma dicotomia interessante, a epítome do arquétipo "good cop, bad cop" de muitas histórias policiais: Cenoura aprende com Vimes sobre a complexidade do mundo, superando sua ingenuidade, ao mesmo tempo em que tempera o cinismo do Capitão.

Aqui, eles já tiveram algum tempo para se acomodar ao outro; mais que isso, o garoto do campo se adaptou a cidade e não é difícil perceber que Cenoura ama Ankh-Morpork; o que Vimes, às portas da aposentadoria, sabe ser um amor ingrato. Aliás, a questão do afastamento de Vimes, o novo substituindo o velho, é um dos temas prevalentes da história. A despeito de afirmar que deixar a Guarda da forma como está fazendo - vivo, razoavelmente inteiro e casando com uma mulher que ele ama - é um sonho realizado, uma fuga do destino bastante amargo e solitário que é ser um membro da Vigilância Noturna, a verdade é que Vimes não sabe fazer outra coisa. Ele não sabe como ser um civil e quando Vetinari ordena que ele entregue seu distintivo, Vimes perde o rumo de si mesmo. Ser um Vigia é muito mais que uma profissão para o Capitão: é uma vocação e um modo de vida.

"- Quanto isso significa para você?

Vimes olhava para o vazio. Não conseguia encontrar as palavras certas. Porém, ele sempre tinha sido um homem com um distintivo. Não estava certo se poderia ser um sem o outro."
Como Angua muito bem observa em seus primeiros dias como uma recruta na Guarda, os membros da corporação não têm exatamente o que se chama de 'vida pessoal'. Mesmo em seus períodos de folga eles estão andando pela cidade, observando, conhecendo suas ruas, seus becos, sua história. Cenoura pode fazer isso de forma mais ostensiva, mas os outros também são do mesmo jeito.
"É tudo para o bem da cidade, senhor. Sabe de onde vem a palavra "policial"? Significa "homem da cidade", senhor. Da antiga palavra polis."
Como policiais, os membros da Guarda são homens da cidade. Eles a servem e protegem, cuidam da coisa pública; é uma palavra com a mesma etimologia de ‘político’, como Vetinari chama a atenção de Cenoura já perto do fim do livro. Hoje em dia, tais conceitos podem estar perdidos, e político, no nosso coloquialismo, tem sinônimos bem diferentes daqueles que Lorde Vetinari quer fazer entender.

Política, governo, a própria noção de estado de direito também são questões que surgem ao longo da história. Ankh-Morpork é uma tirania - na acepção mais antiga do termo, diretamente importada dos gregos - e Lorde Vetinari é um político sagaz, o que chamaríamos de ‘raposa velha’, mas cuja vocação (da mesma forma que Vimes e Cenoura, aliás) é a de servir à cidade. E esse é o principal motivo pelo qual o plano de restaurar a monarquia que serve como o plot que movimenta todo o enredo, é rejeitado por todos, incluindo quem, supostamente, mais ganharia com a causa. Porque uma monarquia não significaria a resolução de todos os problemas; porque quem mais revela capacidade, como é observado várias vezes ao longo da história, não é o herói mítico capaz de tirar a espada da pedra, mas sim aquele que tem motivos e força para atravessar a pedra com a lâmina.

Não é exatamente uma democracia - nem poderia ser, considerando que estamos a falar de um universo mais próximo da Idade Média que da Era Moderna. Mas temos aqui uma cidade que funciona, a despeito do modo peculiar de fazer as coisas (tudo bem que existe algo familiar na forma como a Guilda dos Ladrões cobra taxas anuais para oferecer proteção aos cidadãos de Ankh-Morpork [e assim nasceu o seguro…], mas, de forma geral, não temos grêmios de assassinos; bobos, mendigos, apostadores e alquimistas). E assim, por mais fantástico que seja o mundo criado por Pratchett (e, de fato, é difícil ter algo mais fantasioso que um mundo em formato de Disco que viaja pelo Universo em cima de grandes elefantes, que, por sua vez, se apoiam no casco de uma tartaruga colossal), fato é que o Disco é um reflexo da nossa própria realidade e Homens de Armas é uma genial sátira política e social que se presta muito bem a debates atuais.
"Ele não tinha muita experiência com os ricos e poderosos. Policiais não costumavam ter. Não que esse tipo de gente fosse menos propenso a cometer crimes, era apenas que os crimes que cometiam tendia a ser tão acima do nível normal de criminalidade que estavam fora do alcance dos homens com botas ruins e cotas de malha enferrujadas. [...] Quem tinha dinheiro o bastante dificilmente conseguia cometer crimes. Apenas perpetrava pequenos pecadilhos divertidos."
Vimes está se casando com Lady Sybil Ramkin, a mulher mais rica de Ankh-Morpork - e como Sybil decidiu doar toda a sua fortuna para Vimes por causa do casamento, isso significa que ele passou a ser o homem mais rico num bom par de léguas. Para alguém que não gosta da chamada ‘alta sociedade’, que sempre foi um homem da lei e da Guarda, cujas botas de solados desgastados servem de base para teorias de justiça social, que doa metade do seu salário para viúvas de antigos Vigias e que desconfia de tudo e de todos, é difícil se adaptar à nova realidade.

Não se trata, porém, apenas da nova realidade do casamento e de sua posição social, mas das mudanças que estão acontecendo na cidade. Ankh-Morpork é um centro comercial e financeiro, uma cidade de oportunidades, com uma gestão moderna, e um bom lugar para fazer negócios. Ela está crescendo, recebendo imigrantes, principalmente anões e trolls, que viveram os últimos séculos em conflito. E com a imigração, surgem os problemas: as diferenças culturais, a rejeição por parte da sociedade nativa, que teme ser preterida; rivalidades étnicas… Pouco a pouco, Ankh-Morpork vai se tornando um barril de pólvora prestes a estourar.
"Para cada assassinato resolvido pela descoberta cuidadosa de uma pegada vital ou ponta de cigarro, centenas não puderam ser resolvidos porque o vento soprou algumas folhas na direção errada ou porque não choveu na noite anterior. Muitos crimes são resolvidos por um feliz acidente; por uma carroça aleatória que parou, por uma observação entreouvida, por alguém da nacionalidade certa que calhou de estar a oito quilômetros da cena do crime sem um álibi..."
É nesse contexto que Vetinari impôs as ‘ações afirmativas’ que fazem com que a Guarda recrute Porrete (um anão), Detritus (um troll) e Angua (uma mulher… quase sempre). Vimes revela certo preconceito contra todos eles, mas, bem, Vimes tem preconceito contra a raça humana de uma maneira geral. Adaptar-se a essas mudanças é mais uma complicação no caminho do Capitão ao longo do enredo. Preconceito, tolerância e respeito são mais um dos pontos centrais de Homens de Armas e uma das motivações para os crimes que vão somando cadáveres ao longo das páginas.

E, se as coisas não tiverem ficado suficientemente óbvias sobre o assunto para o leitor, há até um enredo paralelo que passa bem rápido, estrelando um poodle chamado Grande Fido, que é obcecado com a Pureza do Povo Canino e a ideologia da Matilha.

Então temos aqui um livro sobre policiais, sobre o novo substituindo o velho, sobre política e sobre preconceito… E também temos um livro sobre armas.

O grande problema em resolver os crimes que estão acontecendo em Homens de Armas não é o fato de estarmos diante de uma conspiração política envolvendo um suposto herdeiro perdido do trono: o ponto é que existe uma nova arma, algo que ninguém conhece, com um poder de fogo que está além da capacidade de compreensão de um mundo medieval.

É bom lembrar que Discworld é um mundo regido pela lei da causalidade narrativa, um universo acessível através do poder das histórias (o Bibliotecário da Universidade Invisível é capaz de viajar entre dimensões usando a magia concentrada da Biblioteca e dos milhares de livros e conhecimento ali acumulados). É um lugar na encruzilhada entre ideias, para onde frequentemente escorrem conceitos de outros mundos. Pratchett já tinha explorado isso em A Magia de Holy Wood (onde, aliás, Gaspode fez sua estreia na série) e Quando as Bruxas Viajam e é isso que ocorre também nesse livro, quando Leonardo de Quirm desenha o mecanismo da bombarda.

Por essa razão, a bombarda é mais que uma arma de fogo, aliás, a primeira de seu tipo no Disco. Há quem afirme que armas não matam pessoas, mas sim, pessoas matam pessoas. Mas o que acontece quando armas possuem não necessariamente consciência, mas vontade e influência?
"A coisa chamava por algo no fundo de sua alma. Bastava segurá-la na mão e você tinha poder. Mais poder do que qualquer arco ou lança; essas duas armas apenas armazenavam o poder dos seus próprios músculos, pensando bem. A bombarda, por outro lado, lhe dava poder externo. Você não a usava, ela usava você."
Não se trata de uma desculpa para os crimes que são cometidos com a bombarda. O que me parece aqui é que Pratchett quis desafiar um ponto recorrente da cultura de armas. De fato, sozinhas, elas não matam pessoas. Mas quem a empunha se sente empoderado por sua posse. É comum, após um daqueles massacres de atiradores solitários que volta e meia aparecem na TV, vermos foto dos assassinos com seus rifles e pistolas, imagens que tentam passar autoafirmação.

Tenho muitos autores favoritos, mas se fosse obrigada a escolher um único deles para o cargo, esse alguém seria sir Terry Pratchett. Nos mais de quarenta livros da série Discworld, ele nos brinda com um universo inigualável em sua criatividade, na forma como ele utiliza suas referências, como brinca com arquétipos da ficção fantástica, aliado ao humor, para enfrentar temas espinhosos e convidar seu leitor à reflexão. Cada grupo de personagens que compõem uma das linhas narrativas da série traz suas próprias problemáticas. Conheço muita gente que adora os livros com as Bruxas de Lancre, que servem ao debate sobre papéis femininos e questões de gênero. Gosto muito das bruxas, mas são as histórias da Guarda que eu mais gosto.

Todos os livros com os personagens da Vigilância Noturna - lembrando que Homens de Armas é o segundo deles - podem ser classificados como fantasia urbana e sátira social. Todos eles tratam em menor ou maior grau de preconceito, imigração, costumes sociais, política, desenvolvimento. Vimes, Vetinari, Cenoura, entre outros tantos, são personagens fascinantes, poderosos em suas crenças, na forma como conversam com o leitor. Eles sempre me provocam muitas risadas, mas também trazem tantas possibilidade de debate, tantas tangentes possíveis… Pratchett era um humanista em todos os sentidos da palavra e isso transparece na sua obra.
"Pessoal não é o mesmo que importante. Que tipo de pessoa pensaria assim? E pensou de repente que, enquanto Ankh, no passado, tivera sua quota de governantes cruéis e simplesmente governantes ruins, nunca estivera sob o jugo de um bom governante. Esse talvez fosse o pensamento mais terrível de todos."
Já tinha lido esse livro em inglês, quando estava a todo vapor no meu projeto de resenhar a série Discworld por inteiro. Essa releitura foi da tradução e gostaria de observar que gostei mais do trabalho feito na tradução de Homens de Armas que em Pequenos Deuses. Vi algumas pessoas criticarem que faltou uma revisão… só que o detalhe é que as trocas de letras que podem parecer erros de digitação, na realidade, são o estilo de escrita do Cenoura, bem como de uma caligrafia mais antiga (vide alguns monumentos da cidade, como o Correio Real). Isso não é uma coincidência, se for pensar bem. Quem lê Pratchett em inglês sabe que ele não é fácil de traduzir justamente por seus trocadilhos e brincadeiras com palavras.


Outras Recomendações de Leitura: Eu poderia, claro, recomendar toda a série Discworld, os quarenta e um livros, mas vou me ater à linha temporal da Vigilância: Guardas, Guardas, seguido por Homens de Armas (o link é da minha primeira resenha para o livro, em 2012), Feet of Clay (no qual temos crimes misteriosos e golens), Jingo (no qual Sam Vimes enfrenta o maior de todos os crimes: a guerra), The Fifth Elephant (no qual Vimes é feito diplomata, o que é realmente irônico, e conhecemos mais da história de Angua), Night Watch que é meu livro favorito de toda a série, Thud! (com revelações acerca do eterno conflito entre anões e trolls) e, finalmente, Snuff (que pode ser lido como uma paródia de Orgulho e Preconceito).

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Homens de Armas
Autor: Terry Pratchett
Tradução: Alex Mandarino
Editora: Bertrand
Ano: 2017

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