10 de junho de 2017

Fic - Porque a Fanfiction está Dominando o Mundo

Imagine Kirk e Spock, da série Jornada nas Estrelas, vivendo um tórrido caso amoroso; ou o amor entre a humana Bella e o vampiro Edward, de Crepúsculo, chegando às últimas consequências físicas e emocionais. Essas histórias não foram escritas por seus criadores, mas estão ao alcance dos leitores por meio das fanfictions: narrativas criadas por fãs a partir de histórias e personagens consagrados. PhD em Literatura Comparada pela Universidade de Princeton, Anne Jamison mostra, neste lançamento do selo de ideias e debates Anfiteatro, as origens da fanfiction, que datam do final do século XIX, com histórias sobre Sherlock Holmes, faz uma análise da evolução desse fenômeno a partir de obras da literatura e da cultura pop, e explica como a fanfiction ampliou os limites da ideia de produção cultural ao romper o paradigma de que as histórias e os personagens são propriedade exclusiva de seus autores.
Os primeiros textos que publiquei na internet eram fanfics de Harry Potter. Entre 2004 e 2009 fui uma autora razoavelmente ativa no Fanfiction.net sob o pseudônimo de Silverghost, além de participar de um misto de fanfic colaborativa e RPG no Expresso Hogwarts como a geniosa domadora de dragões, Mina MacFusty. De lá pra cá, não escrevi mais fanfics, mas ainda leio muitas, em vários fandoms e sempre achei a ideia da ‘ficção por fãs’ um fenômeno interessante - não apenas como produtora e consumidora desse tipo de mídia, mas como uma curiosa sobre a evolução e alcance desse fenômeno cultural.

Por essa razão, quando vi o livro da Anne Jamison, Fic: Porque a Fanfiction está dominando o mundo, coloquei-o imediatamente na lista, afinal, uma exploração acadêmica séria do assunto, sem se deixar levar por preconceitos - e tem muita gente que torce o nariz para as fanfics e sente um especial prazer em tentar rebaixar os fãs que se envolvem com esse tipo de produção - era algo que muito me interessava. E é irônico perceber (e um dos pontos interessantes que abrem o título) que algumas obras aclamadas pela crítica como alta literatura são, em sua essência, fanfics: o absolutamente brilhante Vasto Mar de Sargaços que explora a figura de Berta, a esposa louca do Mr. Rochester de Jane Eyre, numa discussão de papéis femininos, colonização e choque cultural - e que mudou muito minha interpretação do original Bröntiano - e a deliciosa peça Rosencrantz e Guildenstern estão Mortos de Tom Stoppard, que traz um novo ponto de vista para Hamlet, são ótimos exemplos de que apropriar-se de uma história e apresentá-la sob uma ótica diferente não é, nem de longe, uma heresia.

Aliás, considerando que Shakespeare se apropriou constantemente de outras histórias para criar suas peças, não é difícil pensar nele como um ficwriter de sua época… A diferença, conforme explicado no livro, vai muito pela forma como direitos do autor sobre a obra mudaram ao longo dos anos e também pela evolução da mídia e tecnologia e dos próprios conceitos de criação artística.


Há muitos motivos para um fã escrever sua própria versão de uma história consagrada. Eu escrevia fics de Harry Potter por querer saber o que havia no vácuo do passado da história - especificamente, os marauders. Escrevi algumas de Crepúsculo após ser obrigada a ler os livros pela Lucilla, para tentar lidar com todos os furos de roteiro que ia encontrando (acabei desistindo no meio do caminho, porque eram furos demais… mas rendeu algumas coisas engraçadas). Há quem escreva como terapia, por se identificar com os personagens, porque não ficou satisfeito com o final e porque queria explorar relacionamentos que não tinham ficado suficientemente claros na versão original. Curiosamente, a primeira vez que vi se falar em outros tipos de sexualidade que não fossem hetero, bi ou homossexuais foi em fanfics: pan, demi e assexualismo, e todos os graus de cinza possíveis, e, olha só, eu até descobri que me identificava infinitamente com a noção de demissexualidade (alguém quiser saber patavinas sobre o que é isso, recomendo começar por aqui). Há uma miríade de motivos e assim você tem uma infinidade de histórias, de versões, de pontos de vista - o que, a meu ver, enriquece, e muito, a experiência. Não somos todos perfeitamente iguais e refletir nossa diversidade é uma das coisas que encontro muito em fanfics.

De repente, não mais que de repente, as pessoas não estão apenas consumindo um produto - porque essa cultura de massa é um produto -, mas refletindo sobre ele, criando sua própria interpretação, produzindo conteúdo novo. E isso de uma maneira extremamente colaborativa: é gente que escreve ou desenha, compartilha suas obras, recebe comentários, conversa com outros fãs e, num ambiente saudável e sem (esperançosamente) trolls, têm trocas muito positivas e sem hierarquias. São futuros possíveis autores, tendo contato com o público, recebendo críticas, aprendendo o ofício sem intermediários e com a vantagem de estar trabalhando personagens que já são conhecidos e têm seguidores. De boa, escrever fanfics é como fazer uma oficina literária, tendo acesso a um amplo público leitor que vai te dizer se gosta ou não do que você tem a dizer.

Descobri nesse livro que Naomi Novik, que escreve a série Temeraire - que eu amo de paixão e preciso urgentemente terminar - começou escrevendo fanfics da série Mestre dos Mares do Patrick O’Brien, o que faz perfeito sentido, considerando que o personagem de Novik, Laurence, começa O Dragão de sua Majestade como um oficial da marinha britânica no período das guerras napoleônicas e leva essa experiência para o resto da história mesmo quando se torna o capitão de um dragão. Não tenho sombra de dúvidas que as fanfics que ela escreveu com os personagens de O’Brien foram um exercício e aprendizado para a criação de seu próprio universo - um universo que foi esse ano indicado para o prêmio de melhor série no Hugo Awards, um dos principais prêmios literários para fantasia e ficção científica.

Para mim, escrever fanfics foi também uma forma de fazer amizades. Não tenho escrito muita coisa nos últimos tempos além do Coruja, mas na minha época de ficwriter fiz amizade com gente de todas as partes do Brasil, algumas até no exterior; amizades que conservo ainda hoje, mais de uma década após tê-las conhecido. A Jamison destaca no livro essa troca, essa possibilidade de conexões - o fato de que fandoms se reúnem e se identificam como comunidades. Primeiro, comunidades mais localizadas, centradas no fenômeno dos fanzines, crescendo e se globalizando com o advento da internet. Isso faz com que eu possa trocar cartões de natal com uma ficwriter americana e mandar comentários para uma outra, filipina. O quão fantástico é isso?


O volume é dividido em cinco partes, abarcando vários fandoms, começando por Sherlock Holmes e a história do Grande Jogo, na qual os leitores embarcam na narrativa de que os relatos são realmente escritos pelo Doutor John Watson e Doyle é apenas um intermediador para a publicação - além de comentar a publicação de inúmeros contos e pastiches que continuam a sair até hoje (Gaiman escreveu dois dos meus favoritos, um que se passa num universo lovecraftiano e outro uma investigação sobre mortalidade) - passando por Star Trek, Arquivo X, Buffy, a Caça-Vampiros, Harry Potter e Crepúsculo, onde explora o fenômeno da publicação de fics como trabalhos originais (eu achava que era só 50 Tons de Cinza, mas me enganei). Tudo isso acompanhado de entrevistas, ensaios, memórias e debate, muito debate.

Jamison conseguiu escrever um livro didático, divertido, que consegue conversar tanto com o fã como com o curioso e o acadêmico. Uma ótima pedida para refletir sobre literatura, mercado e como essa relação evolui junto com os fãs.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Fic - Porque a Fanfiction está Dominando o Mundo
Autor: Anne Jamison
Tradução: Marcelo Barbão
Editora: Rocco
Ano: 2017

Onde Comprar

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A Coruja


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