19 de junho de 2017

#AmericanGods || Diário de Viagem Episódio 08: Venha para Jesus


Adaptar uma história de uma mídia para outra não é uma tarefa fácil. Embora isso signifique que você já começa de pronto com uma audiência base, você precisa lidar com o fato de que essa audiência, fãs da obra original, têm expectativas. E aí você precisa responder à ansiedade desses fãs e ampliar seu público fazendo o roteiro compreensível para quem não conhece o original. American Gods, em sua primeira temporada, conseguiu fazer isso e ir mais além: permanecer fiel ao espírito do livro e ainda adicionar cenas e personagens e surpreender quem achava que já sabia tudo o que ia acontecer.

O episódio começa sem conectivos óbvios com a ação que deixamos para trás, quando Shadow e Wednesday acabaram com Vulcan. Eu gostaria de ter visto como os dois deixaram a cidade do deus romano após matá-lo e a recepção que eles tiveram ao chegar ao ateliê de Anansi. Isso torna a cena inicial um pouco abrupta, embora eu tenha suspirado de alívio quando me dei conta de que Anansi finalmente ia aparecer nos acontecimentos do presente.

Faz bastante sentido que Anansi - ou o senhor Nancy em tempos modernos - seja um alfaiate. Não sou tão familiar com o folclore africano e pelo que pesquisei, não vi nada sobre o Aranha como costureiro, mas há um mito grego envolvendo uma mortal, Aracne, que tinha uma extraordinária capacidade de bordar e que por isso decidiu desafiar Atena, deusa da sabedoria e dos trabalhos manuais. A arrogância de Aracne fez com que a deusa a transformasse numa aranha, que se tornou assim na tecelã dos animais.


Nosso pequeno interlúdio com Anansi, contudo, é… pequeno. Ele aparece para costurar os ternos de Wednesday e Shadow, para contar uma história e para repetir (duas vezes seguidas) seu mote da vinheta no segundo episódio: “anger gets shit done”. Ok, eu concordo com isso, mas a repetição desnecessária acaba diminuindo o impacto. Por outro lado, Anansi está aqui substituindo o senhor Íbis como contador de histórias - o que faz sentido dentro de sua própria mitologia. Embora não se apresente como uma das vinhetas ‘Vinda à América’, é exatamente disso que se trata a cena e, como nos outros episódios, essa narrativa é importante para compreendermos o que virá a seguir.

Bilquis era uma personagem menor que sequer chegava a contracenar com os outros deuses originalmente, sendo atropelada por Technical Boy no início da guerra invisível que está acontecendo entre novos e velhos deuses. Desde o primeiro episódio, contudo, ela foi ganhando destaque e importância e agora enxergamos o porquê. Wednesday está montando um jogo de xadrez e para completar seu jogo, ele precisa de uma Rainha. E Bilquis é a primeira delas. Só que ele chegou tarde demais.


A forma como Anansi conta essa história é evocativa da raiva e da revolta que tornaram tão potente sua primeira apresentação; Bilquis não apenas é negra, como é também mulher e, como o deus Aranha tão bem observa, os homens temem o poder de todas as mulheres, o poder de criação e renascimento. Eles tentam controlá-la, reprimi-la, submetê-la. No templo, quando o rei acha que pode dominá-la, em meio a seus mistérios orgiásticos, ele logo aprende que não tem poder para escapar aos seus próprios desejos. O rei é devorado pela rainha. O tempo passa, Bilquis se adapta e nós então a encontramos numa boate em Tehran, em 1979.
“Kings kept coming after her, Our queen’s power which is the power of all women, rebirth and creation, makes some kneel, some men angry, and you know it — anger gets shit done. They took guns knives and sharp dicks. They grabbed the power. Gave it to men. Forced our queen into the back seat.”
O ano e o local são de extremo simbolismo para o que acontece a seguir, e servem de paralelo para a cena que Bilquis assiste na TV. 1979 é o ano da Revolução Iraniana, quando o Irã se transformou numa república islâmica teocrática, e os aiatolás subiram ao poder, implantando a sharia, a lei religiosa. A cena que assistimos na discoteca é representativa da violenta repressão, especialmente das mulheres e de tudo o que tivesse a ver com sexualidade, que veio junto com a revolução. Essa intolerância e o medo do feminino é mais uma vez demonstrado quando Bilquis assiste do lado de fora de uma lanchonete os terroristas do ISIS destruindo templos e imagens que consideram pagãos.


Bilquis vai para os Estados Unidos provavelmente na mente de refugiados iranianos fugindo da perseguição religiosa e política - talvez até da moça na discoteca (é ela que está sentada algumas cadeiras à frente no avião, não é?). Só que Bilquis chega aos EUA justamente na época em que se começa a falar da AIDS - os primeiros sinais que identificariam a doença surgiram em 1978 e em 1982 a doença foi batizada pelo nome com a qual a conhecemos; em 1983 o vírus é isolado por cientistas e começam a surgir casos fora da comunidade homossexual. Os números de infectados sobem, fala-se em epidemias e há certa histeria coletiva em torno do assunto. A cena é rápida mas é possível ver que a moça (a mesma da discoteca e do avião?) que Bilquis visita no hospital - e que, pelos traços do rosto parece ser de descendência árabe - foi diagnosticada com HIV.

Agora, Bilquis, como uma deusa, provavelmente é imune ao vírus. Mas não há nada que diga que ela não possa passar aos seus parceiros (embora considerando que eles são consumidos por ela depois do sexo, uma contaminação é a última coisa com que eles precisam se preocupar). Além disso, seu poder não é decorrente simplesmente do ato carnal, mas do gozo, daquilo que representa o início da vida - na orgia em seu templo, seus adoradores são consumidos por ela como um líquido viscoso que a penetra no clímax. Considerando a necessidade de uso de preservativos, isso provavelmente explicaria a dificuldade que Bilquis enfrenta para conseguir poder até que Technical Boy a encontre.

E aí temos a grande surpresa dessa versão da história. Originalmente, quando Bilquis começa a utilizar a tecnologia para colocar anúncios e encontrar parceiros - sendo que no livro ela é uma prostituta -, o novo deus a encontra e mata. Nessa versão, é Technical Boy que procura Bilquis e oferece a ela a tecnologia para que ela entre em sites de relacionamentos e assim descubra adoradores. E, bem, provavelmente é bem mais fácil convencer alguém a não usar preservativos quando você não está se apresentando como uma prostituta barata de beira de esquina - não que haja algo contra prostitutas na opinião dos deuses; é bastante provável que Bilquis tivesse prostitutas rituais em seu templo como Ishtar dos mitos mesopotâmicos (e sempre achei que Bilquis e Ishtar poderiam ser a mesma pessoa, embora não haja nenhuma referência direta ao assunto na história).

Bilquis é uma das deusas mais antigas que aparecem na série, contemporânea de Salomão, um mito de mais de três mil anos de idade. Ostara não tem uma origem bem certa - estudiosos consideram-na versões de Frigg, esposa de Odin; a fenícia Astarte e a babilônica Ishtar, ou mesmo a grega Eos, deusa do amanhecer. Wednesday fala em doze mil anos de mitologia, o que nos coloca antes mesmo do início daquilo que entendemos como civilizações humanas, por volta de 4.000 a.C. na Mesopotâmia. Fato é que todas essas são faces de um mesmo princípio, deusas do amor e da fertilidade, das colheitas, da primavera, da prosperidade. Os artefatos mais antigos já encontrados relacionados à religião costumam ser de mulheres de seios e quadris fartos, ligadas à adoração do feminino como símbolo de criação. É por isso que Bilquis e Ostara são tão importantes: elas são as peças mais antigas e mais poderosas do tabuleiro, não importa o que digam os deuses masculinos, quase todos ligados ao princípio da destruição.

Mas vamos voltar ao ponto em que estávamos da história antes que saiamos em maiores tangentes...

Embora a participação de Anansi seja muito pequena, fato é que há detalhes importantes em cena - e não estou falando das aranhas por todo o lugar. Anansi presta homenagem e lealdade a Wednesday usando de sua arte para fazer as vestes do outro deus, algo equivalente ao que Vulcan fez no sexto episódio, quando forjou, com suas mãos e seus poderes, uma espada. Mas aqui não há tons de traição; na verdade, Anansi nos é apresentado como um confidente íntimo de Wednesday quando nos damos conta de que o alfaiate sabe o que realmente aconteceu a Vulcan, algo que ele só poderia saber se Wednesday lhe tivesse contado.

Vestes prontas, voltamos à estrada e Shadow continua a ter pesadelos, dessa vez com montanhas de crânios, a árvore dos mundos e o búfalo. Ele continua a se digladiar com suas crenças, com sua incapacidade de acreditar no que está acontecendo ao seu redor - quando conversa com Jesus, Shadow chega a comentar que acha estar preso num sonho vívido, mas mesmo nisso ele é incapaz de crer de verdade. Mas depois de tudo o que acontece no episódio dessa semana, é impossível que ele continue a duvidar.


Chegamos a casa de Ostara no dia de sua celebração, o início da primavera, e encontramos o lugar tomado de diferentes versões de Jesus, o cara que, segundo Wednesday, roubou a páscoa: “It’s her day! You took it! You crucified her day! When they started following you, everybody else got burned in your name. Happy Fucking Easter!”. Ostara tenta negar, dizer que está tudo certo, que é perfeitamente aceitável que ela tenha de dividir seu dia com o outro deus (e suas várias versões), mas é claro que essa não é a verdade. Voltamos assim ao tema da história contada por Anansi, das mulheres divinas usurpadas pelos homens, que as temem e que tentam reprimi-las: Jesus pode não ter escolhido agir dessa maneira, mas seus fiéis, sua religião, a qual exalta a castidade e coloca a mulher como secundária na hierarquia da igreja, certamente bate de frente com os rituais pagãos de fertilidade.


Wednesday, que se apresenta desde o começo como um mentiroso e um manipulador, sabe muito bem como alimentar essa mágoa. É demonstrando a Ostara que ela está se contentando com migalhas e que seu poder, sua figura é muito maior do que fazem-na parecer que ele ganha a deusa da primavera para seu lado. Ostara é peça crucial do jogo, e isso muda tudo o que os leitores de Deuses Americanos poderiam esperar para o que virá a seguir, uma vez que no livro, sua participação é tão pequena e discreta quanto a da própria Bilquis, e as ações dos antigos deuses nem de longe têm o alcance junto aos mortais que a tomada da primavera como refém nesse episódio - porque não há outra palavra para o que ocorreu aqui; Wednesday, através de Ostara, tomou a primavera como refém e, dessa forma, jogou o país no meio de uma crise de alimentos. Isso é muito maior do que qualquer coisa que poderíamos esperar. Na verdade, eu não tenho absolutamente nenhuma ideia do que esperar a seguir.

E finalmente, FINALMENTE temos a revelação da identidade de Wednesday. Sim, para a audiência, era bastante óbvio, mesmo quem não leu o livro com certeza já sabia quem ele era de fato, porque o show não tentou ser sutil em momento algum. Só Shadow não sabia da verdade, embora é bem possível que isso se deva mais ao fato de ele não querer acreditar do que ele não saber a verdade. Mas, sim, Odin, Odin se revelou em toda sua glória, em meio a trovões e sacrifício e embora eu adore a cena do carrossel e queria que Shadow tivesse declarado o nome do deus em vez de ser apenas um expectador de todo aquele teatro, gostei da forma como Odin chega com declarações abertas de hostilidade e sem maiores subterfúgios.


E, finalmente, Shadow ACREDITA.

É interessante perceber aqui quantos dos antigos deuses passaram para o lado dos novos deuses, indicativo de uma simbiose que eles poderiam querer negar, mas que é bastante clara. Bilquis, Ostara, Vulcan, Papai Noel (!!!), todos eles fizeram acordos, mantendo seus poderes como fábulas distribuídas pelos novos deuses. Media resume essa questão muito bem quando observa que eles - os novos deuses - são os responsáveis pela reprodução e redistribuição, detendo o controle das narrativas. Só que, ao aceitarem se submeter aos novos deuses, os antigos deuses perdem seu significado, tornam-se engrenagens numa máquina que trabalha para idiotização da sociedade. E significado é tudo, as histórias precisam ter um sentido para que a vida possa ter sentido, e os deuses são sua inspiração, do contrário, passamos por ela como zumbis, incapazes de sentir. Sem acreditar em nada, somos como Laura, que antes da morte é um grande vazio existencial sem esperança ou perspectivas.

E sim, claro, temos de falar de Laura e como ficamos agora sabendo que sua morte foi um sacrifício em nome de Wednesday. Mais que isso, ela e Shadow estão na mira do deus há muito tempo e tudo o que aconteceu com eles - o fracasso do golpe no cassino, a prisão de Shadow e a morte de Laura - foram propositais, necessárias para colocar Shadow no lugar certo para que ele se tornasse o homem de Wednesday; para que Shadow não tivesse nada a perder, ninguém e nada para quem voltar.

Quero muito ver o que Laura vai fazer com Wednesday…

O episódio e a temporada acabam com um Shadow que acredita em tudo, um mundo em que nada mais cresce, com Laura pronta para acertar as contas com Odin e Bilquis a caminho da House on the Rock, para o carrossel e o encontro dos antigos deuses. Será ela uma agente infiltrada, subordinada ao Technical Boy? Mas pela narrativa de Anansi, os velhos deuses sabem que ela está do lado dos novos deuses. Ou será que não é assim? Bem, são perguntas que só poderão ser respondidas na segunda temporada.

American Gods, como um todo, foi mais do que eu esperava. Embora o ritmo da história possa ter deixado a desejar para alguns, assemelhando-se a uma enorme introdução em que nada realmente acontece (algo que vi escrito em algumas críticas pela internet), a verdade é que ela foi tudo o que precisava ser. Apresentou e estabeleceu bem os personagens, criou tensão e expectativa, agregou à história original em vez de apenas adaptá-la e traduziu de forma brilhante as páginas de um livro para a tela da TV. Roteiro, fotografia, trilha sonora, atuações; em tudo a série foi brilhante. Se os deuses precisam que acreditemos neles para existirem, American Gods foi uma excelente maneira de nos transformar todos em crentes.


E agora… bem, agora é esperar que os novos deuses percebam as excelentes possibilidades de lucro da série e comecem a produzir colecionáveis. Sério, eu preciso dos deuses em forma de colecionáveis para montar um altar na minha estante! É a melhor forma para sobreviver à espera até a segunda temporada, ano que vem...

Capítulos equivalentes ao Episódio
Interlúdio (após o capítulo 12)
Metade final do capítulo 11

Itinerário de Shadow até aqui
Kentucky (Casa de Ostara)

Canções para Tocar na Estrada
Trilha Sonora da Série no Repeat


A Coruja


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