1 de junho de 2017

#AmericanGods || Diário de Viagem Episódio 05: Um Você com Cheiro de Limão


A primeira temporada acaba e o bendito carrossel não aparece… Sério, estou obcecada em ver a cena do carrossel… mas, ok, se não chegamos ainda a House on the Rock e se mais uma vez desviamos bastante do livro (e começo a desconfiar que o carrossel talvez não aconteça nessa primeira temporada?), ainda assim, esse episódio veio repleto de alguns ótimos desenvolvimentos e explicações.

O episódio abre com mais uma das vinhetas de vinda à América, dessa vez em forma de animação, com uma tribo nômade fugindo da fome, atravessando das planícies frias da Sibéria para o Novo Mundo, trazendo consigo seu desu mamute, Nunyunnini. A cena, em forma de animação, é inspirada na travessia pelo Estreito de Bering, que é uma teoria científica bem aceita para explicar como o homem chegou às Américas, vez que, na última era do gelo, o nível do mar teria baixado, criando uma ponte natural entre a Ásia e as Américas nesse ponto, onde Rússia e Alasca quase se tocam.

Os nômades chegam à América, mas não encontram ali a terra prometida rica em comida que achavam que iriam encontrar. Atsula, a mulher sagrada da tribo (no livro chamada de a protetora dos segredos e a raposa), procura os conselhos de seus deus que lhe diz que é necessário sacrifício para a divindade que já mora naquelas terras.

Isso não é uma surpresa, claro: desde o primeiro episódio, o tema do sacrifício como algo necessário para que os deuses possam intervir tem sido uma constante. Atsula morre para o deus Búfalo - uma divindade com que já nos deparamos antes, nos sonhos de Shadow -, para que seu povo possa ser aceito pelos nativos. Infelizmente, com a morte dela, o líder dos nômades rejeita a oferta dos homens do deus Búfalo e com isso condena seu próprio povo.

Restam apenas as crianças entre aqueles que vieram da Sibéria, e elas são assimiladas pela outra comunidade, aprendendo as crenças e costumes deles e esquecendo seu deus mamute. Nunyunnini é esquecido, pois “The gods are great. But people are greater. For it is in their hearts that gods are born. And to their hearts that they return. Gods live, and gods die”.

A história de Nunyunnini e seu povo tem muito a ver com a cena toda de Shadow, Wednesday e os novos deuses na delegacia. A história nunca se explica completamente de forma direta, mas essas vinhetas nos dão as pistas de que precisamos para compreender o que está acontecendo. Imigração, miscigenação, assimilação cultural - e a morte dos deuses antigos, substituídos, diminuídos, esquecidos diante dos deuses desse novo mundo, de uma nova era. As razões de Wednesday são claramente uma questão de sobrevivência. Ser esquecido, como ele mesmo já observou antes, é seu maior medo, porque significa a morte de uma forma bastante definitiva.

Antes que cheguemos ao confronto na delegacia, contudo, temos Laura a considerar; Laura e seu muito aguardado reencontro com Shadow, cena que fechou os dois episódios anteriores.

Para uma cena que esteve sendo preparada por um tão longo tempo, chega a ser quase anticlimático o que realmente acontece - a essa altura dos acontecimentos, Shadow já viu tanta coisa estranha acontecendo que sua esposa morta aparecer direto do túmulo praticamente não o surpreende - a resposta dele é “Hey, baby. The fuck you doing here?”. Mais importante que discutir como diabos Laura voltou ao mundo dos vivos (de forma relativa) é a completamente mundana explicação do porquê ela o ter traído com Robbie.

Prioridades, prioridades…


Shadow ainda ama Laura - o suficiente, pelo menos, para ouvi-la e aceitá-la como uma zumbi -, mas ele não é mais um filhotinho desgarrado que aceita todas as ordens dela, o que, aliás, surpreende Laura. E é interessante que Shadow não reaja com recriminações, ainda que lhe seja obviamente dolorido ouvir o que aconteceu entre a esposa e o melhor amigo. Ele não se deixa seduzir, não a coloca mais num pedestal, e não precisa mais dela como uma âncora.

Laura, pelo contrário, decidiu colocar Shadow como centro de seu mundo. Numa realidade em que sua própria (re)existência não tem lógica, Shadow lhe traz sentido por um motivo muito simples: através dele, Laura consegue se sentir viva. E é só isso que ela deseja para si - aliás, é exatamente isso que ela desejava mesmo antes, quando eram a depressão e a apatia que a embotavam para a vida. O fato é que ela continua a ser a mesma que era antes, porque em todo esse esquema, Laura em nenhum momento tentou levar em consideração como o marido se sente ou do que ele precisa. Ela não dá tempo para que ele pense ou mesmo lide com tudo o que aconteceu, absolutamente certa de que Shadow continua seu ‘puppy’. E se ressente quando ele diz não.

No livro, que é todo contado do ponto de vista de Shadow, nunca foi dito nada sobre a coluna de luz que acompanha o personagem sob o olhar de Laura… Mas há uma citação nesse sentido na metade final do capítulo 06, quando Laura salva Shadow, em que ela diz “você brilha como um farol em um mundo formado pela escuridão”. Lendo e conhecendo os fatos apenas sob um ponto de vista, ela parece estar falando em metáforas, mas a série deixou isso de forma bem literal. Shadow é, para Laura, sua salvação.

O que essa luz significa é algo que ainda não temos como explicar (ao menos, não sem spoilers…). Talvez seja algo intrínseco a ele ou talvez Shadow esteja mudando desde que Wednesday e os outros deuses entraram em sua vida. E, se até aqui, ele ainda tentava insistir em negar o que estava acontecendo, esse quinto episódio, que tem mais coisas bizarras acontecendo por minuto que qualquer outro da série, força Shadow a aceitar que, de fato, não estamos mais no Kansas, Totó.


Mas, enfim… Enquanto Laura está na banheira tentando aquecer o próprio corpo e continuar a tentar impor sua vontade sobre Shadow, o marido e Wednesday (que foi alertado de que algo estava acontecendo por um corvo batendo à sua porta…) são presos. E pela primeira vez teremos algumas respostas claras sobre o que está acontecendo, além de um confronto direto com os novos deuses.

Muitas religiões e mitologias têm trindades sagradas - um rei dos deuses, uma grande deusa mãe e seu filho dileto. No cristianismo temos Pai, Filho e Espírito Santo. E entre os novos deuses de American Gods nós temos Technical Boy, Media e o grande psicopata (sério, o que é aquele sorriso!), Mr. World.

Media é uma personagem que acho muito interessante porque ela não é simplesmente a televisão: na cena em que, utilizando a imagem de David Bowie, ela fala sobre o pânico causado pela leitura dramática no rádio de Guerra dos Mundos, de H. G. Well, em 1938. Ela é o rádio, o cinema e a TV, os jornais e os livros, os meios de comunicação de uma maneira geral. Em sua essência, Media é algo como o imaginário coletivo, nascida do próprio ato de entreter e contar histórias e isso a torna muito próxima do que representam os antigos deuses. Adoro o fato de que sua imagem está sempre se transformando, adaptando, usando ícones modernos que aprendemos a amar e a adorar - Lucy Ricardo, David Bowie, Marilyn Monroe -, personagens que deixaram verdadeiros cultos em suas trajetórias midiáticas.


A modernização de Technical Boy, por outro lado, é perfeita para a forma como a internet funciona hoje em dia, comparativamente com a época em que o livro foi escrito. Sua linguagem, sua incapacidade de pensar antes de fazer as coisas, de ‘tentar apagar incêndios com gasolina’ é algo que tem muito a ver com os trolls virtuais, guerras de memes e outras variantes. Ele é tudo o que há de mais desagradável no universo WWW…

E por fim temos Mr. World e seu sorriso desvairado. O senhor Mundo é a face da globalização, das grandes corporações, do Sistema. A própria forma como ele fala - fusões e incorporações, o coletivo acima do individualismo - seus trejeitos, sua forma de se vestir… Na minha cabeça, toda vez que a câmera se voltava para Mr. World, as referências que me vinham à mente eram mafiosos, políticos e o “1% de Wall Street”. Mas ele representa também a crença nas teorias de conspiração, em agentes especiais, vazamento de dados de inteligência e olá, WikiLeakes!


Até então, American Gods fora um lento adentrar num mundo de maravilhas. Mas agora Shadow se vê em meio a uma cena de filme de terror, que começam nas pequenas demonstrações de poder de Media e Mr. World, continuam no conhecimento intrusivo que o líder dos novos deuses demonstra e culmina na saída da delegacia, nos policiais mortos de maneira completamente desnecessária - não como sacrifício, mas como algo descartável - e na árvore de pesadelos, talvez a mesma árvore dos pesadelos recorrentes de Shadow (Yggdrasil? No livro há um Mr. Wood que trabalha para Mundo, talvez seja mais lógico identificá-lo assim. Duvido muito que Yggdrasil fique do lado de Mr. World).

Isso tem muito a ver com a motivação de Wednesday para recusar a oferta dos novos deuses. Quando Media apresenta o míssil Odin (se ainda havia alguma preocupação com sutileza, demos adeus a ela aqui) com destino à Coréia do Norte (haha!), sua resposta é que eles - os antigos deuses - dão sentido à existência dos homens. Há uma troca, não se trata apenas de tirar dos humanos, mas de devolver a eles o tempo e a essência. Ele não aceita ser assimilado - porque não se trata de uma incorporação comercial, mas de uma assimilação cultural - sanitizado para consumo moderno e enfeitado com unicórnios (posso dizer que aqueles unicórnios me deram tanto pavor, no cenário apocalíptico que se apresentava entre eles, quanto o sorriso de Mr. World?). E aqui temos o significado do título - todo mundo já deve ter notado que desinfetantes e outros produtos de limpeza têm muitas vezes um perfume cítrico, de limão (pinho sol!).

O interessante é que, nesse contexto - no ciclo adoração, sacrifício, sentido -, a relação de Laura com Shadow após sua morte pode ser vista como uma relação de humano e divino, exceto pelo pequeno detalhe de que Laura ainda não compreendeu que é necessário sacrifício para que os deuses nos ouçam - e sacrifício não é apenas sangue e morte, mas tempo, atenção, cuidado. E isso também agrega significados tanto aos sonhos de Shadow - visitado pelo Búfalo, que já sabemos por causa da vinheta de abertura, ser o deus americano desde tempos imemoriais - quanto ao motivo de Mad Sweeney ter dado a ele sua moeda da sorte.

Quando Mad Sweeney e Laura se encontram e o leprechaun diz que foi um erro ter dado a moeda da sorte a Shadow, que aquele era um presente para um Rei da América e não um pé-rapado qualquer, eu imediatamente me lembrei da história do rei Corvo em Jonathan Strange e Mr. Norrell - alguém que foi escolhido pela própria terra num momento de crise para assumir um papel crucial, ainda que por apenas alguns segundos, mas o suficiente para mudar toda a história. Shadow é importante - talvez porque Wednesday precise dele para acreditar, talvez porque Laura o veja como um pilar de luz, talvez por uma série de coincidências que provavelmente não são tão coincidências assim… Mas essa frase que Mad Sweeney fala é algo importante que bem pode ter um impacto futuro, então vou guardá-la por aqui como possível pista para desdobramentos posteriores. Afinal, faz bastante sentido que na onda de má sorte de Sweeney ele de fato tenha dado a moeda a alguém que tinha direito a ela…

Lemon Scented You não foi o melhor episódio da série, mas serviu para colocar muitas das cartas na mesa. Tivemos explicações, nosso primeiro confronto real e Shadow agora firmemente atravessou a barreira do sobrenatural. Se a preocupação de Media era que houve alguém para acreditar, penso que seja tarde demais. Eu gostei; gostei da escolha em contar a história passada na Era do Gelo em forma de animação, do diálogo entre Media e Technical Boy sobre imagem e crença, da tensão na sala de interrogatório com todos os maiores jogadores presentes. Foram cenas surreais e bizarras - sério, o que eram aqueles unicórnios - e isso era extremamente necessário para afetar o senso de realidade não apenas do Shadow, mas também de nós, expectadores. Visualmente, esse foi o episódio mais fascinante da série até aqui.


Vamos ver o que virá semana que vem...

Capítulos equivalentes ao Episódio
Vinda à América - 14.000 a.C. (após o capítulo 13)
Parte final do Capítulo 06 (a prisão de Shadow, embora o resgate por Laura seja mais parecido com o que ocorre no primeiro episódio)

Itinerário de Shadow até aqui
Uma delegacia em meio a Lugar Nenhum...

Canções para Tocar na Estrada
Sem canções dessa vez


A Coruja


____________________________________

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog