19 de maio de 2017

#AmericanGods || Diário de Viagem Episódio 03: Cabeça Cheia de Neve


É engraçado; estou na minha quarta releitura de Deuses Americanos, conheço a história quase de cor, incluindo os contos que vieram depois do romance e a série consegue e continua a me surpreender. Tinha muitas expectativas para a estreia de American Gods e muito medo de que o show terminasse por não atender a elas, mas a verdade é que a cada episódio eles conseguem se superar. Amei os dois primeiros episódios e para esse terceiro não sei nem como expressar o quanto me encantei. Parece que a cada semana eles conseguem retornar ainda mais fortes, visualmente fascinante e com um roteiro ao mesmo tempo igual e diferente ao que esperamos do livro.

Me pergunto como tudo isso se traduz para quem está tendo o primeiro contato com a história agora, sem conhecer nada do que tem nos livros. Para mim, é difícil desvincular daquilo que já sei, de todos os pequenos momentos que estou esperando ansiosa para ver na tela e de todas as pistas que vão surgindo e que revelam o caminho até o final do livro.

Enfim, vamos ao que interessa: o episódio dessa semana, que compreende o final do capítulo 04 e metade do capítulo 05, além do interlúdio “Em Algum Lugar da América” compreendido entre os capítulos 07 e 08.

Head Full of Snow começa com mais uma cena inexistente no livro: a senhora Fadil, de origem egípcia, recebe a visita da Morte - ou melhor, Anúbis - após um acidente na cozinha. Embora seja muçulmana, Fadil manteve a memória dos antigos deuses por causa das histórias que ouviu da avó na infância - e é por isso, por não ter esquecido, que a ela é concedida a graça de viajar ao mundo dos mortos como nos velhos tempos. Anúbis, o deus chacal, é o guia das almas, protetor das tumbas e guardião da balança no panteão egípcio. Sua principal função era pesar o coração do morto contra Ma’at, a verdade, representada por uma pena: se o coração fosse mais pesado que a pena, o falecido seria devorado por um demônio com cabeça de crocodilo, Ammit; se fosse mais leve, então a ele seria concedida a imortalidade da alma e acesso ao reino de Osíris.


Esse prólogo dialoga com o outro interlúdio que nos apresenta o vendedor árabe de badulaques, Salim, que descobre num taxista em Nova York um djinn ou ifrit, para nós ocidentais uma figura mais conhecida como o gênio (embora sem lâmpada). Como Fadil, Salim é capaz de identificar o caráter sobrenatural de seu companheiro pelas histórias que ouviu da avó na infância (‘avós também vieram para a América’, como observa o djinn), com a diferença de que os deuses egípcios foram substituídos por outras religiões, ao passo que os gênios foram absorvidos da mitologia árabe para a religião muçulmana, tomando a forma de demônios.

É interessante porque essas duas cenas trabalham com o mesma tema: a morte. Um mito é consumido pelo outro, a sra. Fadil morre, Salim assume uma nova identidade - fazendo morrer assim sua vida antiga que o estava matando aos poucos numa espiral de desespero e solidão… Ao mesmo tempo, também se trata de renascimento, vida nova, mitos que renascem absorvidos pelas novas religiões.

Tocando brevemente a polêmica que surgiu por causa da cena de sexo desse episódio… não vi ninguém fazer alarde com Bilquis, mesmo quando ela faz sexo (e consome) outras mulheres. Mas, claro que se tem dois homens com direito até a nu frontal, então o povo tem de encher o saco… O que é irônico, considerando que por mais explícito que seja o sexo entre Salim e o gênio, não é uma cena pornográfica: há um mundo de histórias de rejeição, tristeza e solidão na forma como Salim hesita em tocar o ombro do outro quando estão no táxi, no sorriso melancólico, na resposta do gênio quando ele segura sua mão em troca e o encontro de ambos carrega uma delicadeza inesperada, considerando que não há expectativas de relacionamento para além daquela noite.


Esse momento é a forma que Salim encontra de viver sua vida em seus próprios termos, em vez de forçado pelas expectativas da família - o cunhado, os sócios do cunhado, a irmã, os pais. Isso fica melhor explicado no livro, quando Salim observa que se algo lhe acontecesse, a única pessoa que talvez sentisse falta dele seria a irmã e que mesmo os pais se sentiam desapontados e envergonhados com suas escolhas - possivelmente sua sexualidade.

Assim é que ao levar os documentos e a mala de amostras de souvenires de Salim, o Djinn atende ao desejo do homem, um desejo de liberdade, em troca da identidade de Salim.

Voltando à programação normal, voltamos também para Shadow, que dorme no sofá aguardando a manhã chegar e, com ela, a marreta de Czernobog em seu crânio. Shadow dorme e encontra - em sonhos ou numa nova visão - a última das irmãs Zorya; a Polunochnaya, ou a estrela da meia-noite. Ela o beija, lê sua sorte e lhe dá a lua como moeda para substituir o sol - a moeda de ouro de Mad Sweeney que posteriormente, nesse episódio, descobriremos ser sua moeda da sorte -, uma forma de proteção frente aos perigos que existem à frente na jornada de Shadow.

Gostaria de chamar particular atenção para a sorte que Zorya Polunochnaya lê para Shadow, porque ela explica muita coisa sobre as escolhas que o personagem fez até aqui: “You have nothing. You believe in nothing, so you have nothing. You are on a path from nothing to everything… You keep giving away your life. You don’t much care if you live or die, do you?”. Polunochnaya não é a primeira pessoa a apontar a falta de vontade de viver de Shadow - Media o chama com todas as letras de suicida no segundo episódio, quando fala com ele na loja de departamentos.


A traição e morte de Laura representou a perda de uma âncora na realidade para Shadow. Após anos na prisão, todas as esperanças, todos os anseios que ele tinha se perderam de uma vez só. Não se trata apenas de uma perda de perspectivas, mas de um coração partido, um espírito alquebrado. Shadow não tem família, não tem emprego, não tem ambições. Ele está morto por dentro, por mais clichê que isso possa parecer. Por inércia, acaba seguindo Wednesday - mesmo depois de levar uma surra de Mad Sweeney e quase ser linchado pelos asseclas de Technical Boy -; e também decide apostar a própria cabeça num jogo de damas. A adrenalina momentânea que tudo isso lhe causa talvez seja uma forma de reagir.

Até encontrar-se com Zorya Polunochnaya, ele parece resignado e deixa as escolhas que precisam ser feitas por conta da sorte - ou que outros decidam por ele. Ele não vê muitos motivos para dizer não, para sobreviver. Algo muda após essa visão, contudo, algo que o faz ir atrás de Czernobog para propor o segundo jogo; que faz com que ele enxergue humor na situação do roubo no banco e até entre no personagem quando o telefone toca para completar o golpe.

Shadow começa a tomar responsabilidade por suas escolhas. E ele pode até não entender o que está acontecendo, mas tem intuição suficiente para saber que por mais que sua consciência negue, há algo em jogo muito maior do que ele pode imaginar. A essa altura ele já teve a experiência do poder de dois dos novos deuses - Technical Boy e Media -, alguns truques de Wednesday e todas as visões e sonhos - com o Búfalo e a última das irmãs Zorya no terraço do prédio.

Esses despertar para a vida, contudo, é relutante e doloroso. Wednesday o provoca, desafia aquilo que ele acredita ser real, os limites entre realidade e fantasia: "What a beautiful, beautiful thing to be able to dream when you’re not asleep.". Fato é que coisas inexplicáveis continuam a acontecer ao seu redor - e o fato de ter nevado após Shadow pensar em neve é talvez o menor deles, embora seja mais uma pista do porquê de Wednesday ter escolhido Shadow especificamente para acompanhá-lo enquanto organiza seus planos.


Falando em planos… os de Wednesday continuam bem misteriosos. Sabemos que ele está organizando alguma espécie de encontro e que isso potencialmente o fará entrar em confronto com os novos deuses. Mesmo quando Zorya Vechernyaya (e o flerte entre eles continua muito divertido!) o adverte que ele está caminhando para a própria destruição, Wednesday não se preocupa nem se desvia de qualquer que seja o seu objetivo.

O episódio ainda tem mais dois personagens de destaque aparecendo: Mad Sweeney, que tendo dado sua moeda da sorte para Shadow, atravessa uma verdadeira maré de azar, de maneira mais tragicômica impossível - originalmente o retorno dele só acontece no capítulo 08, mas houve um adiantamento -; e, claro, Laura Moon, direto do mundo dos mortos sentada no quarto de hotel de Shadow à sua espera.

Laura aparece bem mais cedo para o marido no livro, mas na série o primeiro reencontro foi substituído por uma visão que Shadow tem em sonho. Seja como for, ao terminar o episódio com sua inexplicável aparição, American Gods nos deixou bem ansiosos para o que acontecerá a seguir.

Particularmente, eu estou extremamente empolgada para o próximo episódio, porque se ele continuar a seguir a média de capítulos e o roteiro do livro, é nele que vamos ver o carrossel pela primeira vez. E aí, bem… e aí é esperar para ver o que de transcendental e maravilhoso veremos a seguir.

Capítulos equivalentes ao Episódio
Parte final do Capítulo 04
Primeira metade do Capítulo 05
Em Algum Lugar da America - Salim e o Djiin

Itinerário de Shadow até aqui
Chicago
Estrada para Madison

Canções para Tocar na Estrada
I’m Into Something Good, Herman’s Hermits
St. James Infirmary Blues, Josh White


A Coruja


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