30 de janeiro de 2017

#LendoSandman: O Alto Preço da Vida


Todas as vezes em que apareceu em Sandman, a irmã mais velha de Sonho, Morte, roubou a cena com seu sorriso, sua alegria e otimismo. Que ela aparecesse em uma série de histórias solo, pois, era uma questão de tempo. Compiladas numa edição definitiva, as narrativas de Morte são agora a bola da vez do projeto #LendoSandman, começando com O Alto Preço da Vida.

Dividida em três capítulos, a história trata de um dia especial na existência de Morte, algo sobre o que já ouvimos falar antes na série original: “um dia a cada século a morte assume forma mortal a fim de melhor compreender como se sentem as pessoas cuja vida ela tira, sentir o gosto amargo da mortalidade. E esse é o preço que ela deve pagar por ser quem separa os vivos de tudo o que houve antes e tudo o que virá depois”.

O começo nos traz Mad Hettie, uma das imortais que já conhecemos em Sandman, lendo as entranhas de um pombo para descobrir quando ‘ela’ vai voltar - e pronta para fazer os preparativos necessários para encontrar a pessoa que 100 anos antes não conseguiu achar. Considerando a arquitetura visível, bem como a gíria e moeda utilizadas pelas personagens desse prólogo, é razoável indicar que estamos em Londres. Corta então para Nova York, onde conhecemos Sexton Furnival, o narrador de O Alto Preço da Vida, um adolescente de 16 anos que se prepara para cometer suicídio por estar entediado com a vida.

Quando, aparentemente, se prepara para saltar de um monte de lixo num aterro sanitário, Sexton provoca uma avalanche que termina com ele preso por uma geladeira entre outros escombros, imediatamente entrando em pânico e pedindo socorro - é, talvez ele não esteja tão pronto para morrer quanto acreditava. Ele é então resgatado por uma garota vestida como uma gótica, de aparência extremamente familiar para nós, leitores.


Ela ajuda Sexton, soltando-o da montanha de lixo, oferecendo sua mão e convidando-o a segui-la até seu apartamento, onde ele poderia limpar seus ferimentos e ela costuraria sua calça. Sexton a acompanha, descobrindo no caminho que seu nome é Didi… ou, pelo menos, é assim que ela é conhecida pela senhora Robbins, a vendedora de maçãs. Ela mesma se apresenta a Sexton como Morte, explicando que Didi e a família fabricada ao seu redor é a maneira do universo de deixá-la mais confortável em seu dia como mortal.

Por motivos óbvios, Sexton não acredita que Didi seja a personificação antropomórfica da morte. Apesar disso, ele termina irremediavelmente preso na trama ao ser ameaçado por Mad Hettie quando esta chega de forma inesperada para solicitar/ordenar que Morte encontre seu coração.

Acho esse tema do coração fora do peito e escondido para que a morte não possa tocar o indivíduo muito interessante. Gaiman usou-o diversas vezes em Sandman - Rose Walker e Mad Hettie e também o mago da história de Vassíli em A Caçada. É uma imagem bastante usada em mitos, de indianos a eslavos, em que o coração externo é equivalente à alma e força vital da pessoa, e, escondido, assegura-lhe imortalidade. E quando Mad Hettie brinca, dizendo que talvez tenha escondido o seu num “ovo de pato dentro de um pato, no meio de uma parede, em um castelo, numa ilha cercada por um lago de fogo ou guardada por cem dragões”, ela está fazendo referência justamente a esses contos folclóricos: um gigante numa das histórias do ciclo nórdico diz “longe, muito longe, em um lago está uma ilha, naquela ilha está uma igreja, naquela igreja há um poço, e no poço nada um pato, naquele pato há um ovo, e naquele ovo está o meu coração”.

Se formos pensar bem, essa também é a base das horcrux de Voldemort…

Assim é que Sexton e Didi partem atrás do coração de Mad Hettie… mas também para dar à Didi o máximo de experiências possíveis nesse seu único dia como mortal, incluindo boates (onde cruzamos com outras duas personagens familiares, Hazel e Foxglove), shows, sequestros e assassinato. Isso porque não é apenas Mad Hettie que é capaz de prever e se preparar para a chegada de Morte: o Eremita também está à solta, buscando a garota para seus próprios propósitos nefastos.

O Eremita é um personagem bastante misterioso, potencialmente outro imortal, como Hettie. Dei uma pesquisada para descobrir se alguém o tinha reconhecido de algum lugar, porque não havia nenhuma eremita específico de que eu me lembrasse que pudesse ter servido como referência ao personagem e vi que há quem o identifique com o Mister Io, parte da Brigada dos Encapotados em Os Livros da Magia.

É um único dia na vida de Didi, mas é um dia repleto de grandes emoções. Ela pode parecer dolorosamente ingênua, levada de um lado para o outro, aceitando ofertas que não poderiam ser mais óbvias armadilhas - mas se ela só tem 24 horas e seu fim está próximo de uma maneira ou de outra, porque então não aproveitar, porque ter medo do que quer que seja? E Sexton, levado nessa aventura, experimenta o que é realmente viver, de forma intensa e, claro, com seus custos.

Voltando ao início da história, é interessante observar que a jornada de Sexton ao lado de Didi se inicia com ela oferecendo sua mão a ele, que é a forma pela qual Morte leva os espíritos de quem ela visita. Mas Didi toma a mão de Sexton para salvá-lo, não para matá-lo - e salvá-lo de uma maneira muito maior do que apenas libertando-o no aterro sanitário. O dia que o rapaz passa ao lado de Didi lhe dá um sentido, ou talvez um gosto novo pela vida. É um paralelo interessante de se fazer com a cena em que Didi toma a mão da Morte no final.


Tudo tem um fim. E isso é o que dá valor à vida. E quando Sexton é confrontado pela Morte com sua própria mortalidade - no acidente que sofre no aterro, trancado pelo Eremita quando Theo dá seu último suspiro ou quando Didi morre na fonte - é só então que ele compreende isso... e passa a enxergar com outro olhar sua própria existência e seu tédio.

O Alto Preço da Vida é um deleite de ler, perfeito para nos lembrar de todos os motivos pelos quais a Morte de Gaiman é tão cativante. Eu seria feliz lendo uma série inteira sobre ela. Mas já que não tem série - nem o filme que Gaiman tem tentado há bastante tempo colocar para frente (e, salvo não me falha a memória, que ele mesmo já se propôs a dirigir) - pelo menos tem mais histórias nessa edição definitiva, sendo que de duas mais quero já falar hoje.

Teoricamente, as histórias Um Conto de Inverno e A Roda viriam depois no cronograma do projeto. Mas ambas dialogam bastante com O Alto Preço da Vida e decidi falar logo delas aqui para mostrar essa relação.

Um Conto de Inverno é basicamente uma explicação do 'um dia como mortal' da Morte. É uma narrativa em primeira pessoa, em que ela lembra de quando começou seu trabalho, como as pessoas a viam no início - bem no início - quando compartilhavam com ela as histórias de suas vidas. E como essa reação foi mudando, como as pessoas passaram a temer sua dádiva e a recebê-la com recriminações e lamentos. Abalada, por um tempo Morte deixou de realizar seu trabalho, mas, com isso, as pessoas pararam de morrer e isso se provou algo não tão positivo quanto ela pensava. Assim, ela voltou a sua função, mas foi se tornando 'fria, insensível, insegura'.

Foi Morte quem decidiu que uma vez a cada cem anos ela viveria um dia como mortal para saber como tudo aquilo funcionava. E o conhecimento da vida fê-la perceber que quando alguém morria, o que precisava era de uma palavra amiga, um sorriso que as acolhesse. É uma história bem curtinha, mas explica um pouco sobre a personalidade de Morte, sobre o que a fez se tornar a personagem cativante que conhecemos nas páginas de Sandman.


A Roda também é uma narrativa em primeira pessoa e o protagonista é um garoto que perdeu a mãe no atentado às Torres Gêmeas de 11 de setembro de 2001. Matt planeja se suicidar - como Sexton no início de O Alto Preço da Vida - para poder encontrar Deus, ou a morte e assim exigir uma explicação. Afinal, sua mãe, que era médica, chegou ao World Trade Center para tentar ajudar e acabou morrendo no processo. Que sentido haveria para isso? Qual a lógica?

Matt é encontrado por Destruição e, depois, Morte também aparece. E Morte lhe oferece uma resposta - algo muito parecido com o que está na essência da lição que Sexton aprende: "O "sentido"? Ande pelo mundo. Ajude a alimentar os famintos. Ajude a confortar os que sofrem. Faça o que for possível para deixar o mundo melhor."

A história de A Roda continua bastante atual e valiosa. Algo de que é preciso se lembrar em tempos difíceis, os 'tempos líquidos' de hoje...

Com isso, termino por hoje, mas daqui a duas semanas tem mais de #LendoSandman. E lembrem-se também de visitar o Pipoca Musical e acompanhar sobre o projeto por lá.


A Coruja


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