4 de abril de 2016

#LendoSandman: Casa de Bonecas


Após as décadas de cativeiro que acompanhamos em Prelúdios e Noturnos, Sonho está tentando colocar a casa em ordem. Seja reconstruindo fisicamente seu reino, promovendo censo demográfico entre seus súditos ou caçando pesadelos fugidos, o fato é que nesse segundo arco de Sandman, o Príncipe das Histórias tem bastante trabalho a fazer.


Desconsiderando por agora a quarta parte, Homens de Boa Fortuna, que parece, à primeira vista, não ter ligação com os outros capítulos desse arco, creio que possamos resumir Casa de Bonecas a três temas principais: o processo de reconstrução do Sonhar incluindo a captura dos ‘arcanos maiores’ que desapareceram na ausência de seu soberano; a jornada empreendida por Rose em busca de sua história e identidade; e, por fim, o alcance das maquinações de Desejo dos Perpétuos em todos esses fatos.

Até o início desse segundo volume, não podemos dizer que conhecemos muito do caráter de Lorde Morpheus - inclusive a se tratar de suas funções. Sabemos que ele é uma criatura vingativa e irascível, inclinado a momentos de melancolia. Podemos extrapolar um pouco do que ocorre durante a busca pelos seus objetos de poder, e dizer que ele é cônscio de seus deveres e responsabilidades e, quando não está furioso após 70 anos de aprisionamento, é uma criatura de extremo sangue-frio.

Daí posso inferir, se quiser, que ele é controlador, do tipo que não aceita conselhos, não suposta falastrões e está acostumado a ter sua vontade como absoluta - características que justificariam a fuga de três dos arcanos maiores desaparecidos.

Brute e Glob têm os motivos mais óbvios em qualquer tentativa de golpe de estado: eles querem Poder, e pra isso, planejam criar um novo Sandman que possa substituir seu antigo chefe - um novo lorde que estivesse sob seu controle e eles pudessem manipular.

Contudo, é difícil acreditar que o plano deles fosse substituir Sonho por Hector: uma tentativa anterior com outro humano foi frustrada, vez que mentes mortais obviamente não foram feitas para lidar com a enormidade do trabalho e poder de um Perpétuo; o próprio Hector, embora um fantasma, está claramente se deteriorando sob a responsabilidade e não parece que continuará naquele papel por muito tempo.


No fim das contas, tempo é a chave da explicação de Brute e Glob, “apenas mais alguns anos”. Mas alguns anos para quê? Uma resposta possível nos é dada por Morpheus, ao se dirigir a Lyta Hall: a criança que ela carregou por tanto tempo em sonhos pertence a ele.

É razoável aqui partir do princípio que o bebê não será totalmente humano - ele passou dois anos no útero da mãe, dentro de um sonho, alimentando-se do que quer que se passe por comida nesse ambiente. Essa natureza de não ser completamente homem, mas também não ser uma criatura criada por Sonho, poderia significar que ele não se fragmentaria sob o peso das responsabilidades de Rei do Sonhar.

Por enquanto, tratemos isso apenas como mera teoria e esperemos o momento em que Morpheus e Lyta Hall voltem a e encontrar.

O Coríntio é um caso diferente de Brute e Glob: ele não almeja um golpe de estado, o trono não é seu objetivo. Coríntio é praticamente puro ego e desejo (a essas alturas ele talvez seja mais uma criatura de Desejo que de Sonho) e tudo o que ele quer é exercer sua vontade impunemente.

Aí temos o capítulo dos colecionadores… e a primeira observação que quero fazer é a absoluta hilaridade causada pela homofonia (especialmente em inglês) de ‘cereal’ e ‘serial’. Sério, quando bati o olho no outdoor recepcionando todos para uma convenção de cereais, eu quase rolei para fora da cama rindo.

A segunda observação é que lendo aquela parte da história, tinha a constante sensação de que conhecia aquela história sob um outro ponto de vista. Passei um bom tempo imaginando se meu dèja-vu era um embaralhamento de memórias da primeira vez que li Sandman, quase dez anos atrás, ou se havia algum fundamento. Após muito forçar a memória, lembrei que existe uma antologia de contos de vários autores brincando no quintal do Gaiman e lá fui eu vasculhar a estante atrás do livro.


De fato, The Sandman: Book of Dreams possui um conto de Will Shetterly que conta o que ocorreu um pouco antes e logo ao início da convenção dos cereais (hihihi), sob o ponto de vista de um escritor de romances policiais convidado a participar do encontro. A história termina logo depois do discurso de Nimrod, quando a ‘simpática’ turma de organizadores da convenção coloca nosso pobre autor numa daquelas situações de entre a cruz e a espada.

É sempre bom descobrirmos que nossa memória não está tão ruim quanto imaginávamos…

O último dos arcanos maiores desaparecidos, Fiddler’s Green, decidiu se misturar aos humanos por pura e simples curiosidade.

No folclore dos homens do mar, ‘os campos verdes do rabequista’ (a tradução mais aproximada que posso pensar) são um lugar paradisíaco, para onde partem os marinheiros que já serviram meio século no mar - lá onde a música da rabeca nunca cessa e ninguém se cansa de dançar.

A forma humana de Fiddler’s Green - que em sua versão do Sonhar, é também um lugar - toma o nome e a aparência do autor Gilbert Keith Chesterton, um dos autores favoritos do Gaiman. A dedicatória de Belas Maldições é para ele e, por causa da dedicatória, li A Inocência do Padre Brown e estou com O Homem que foi Quinta-Feira em algum lugar da minha estante.

Ao mesmo tempo em que o Príncipe das Histórias corre atrás de seus súditos rebeldes, acompanhamos a jornada de Rose Walker para desenterrar segredos de família e reencontrar parentes desaparecidos, primeiro, quando viaja com a mãe para a Inglaterra, onde a verdadeira história do nascimento de sua mãe é revelada por Unity Kinkaid - de quem tivemos vislumbres em Prelúdios e Noturnos, vítima da doença do sono - e depois quando retorna aos Estados Unidos para encontrar o irmão que não vê desde que seus pais se separaram.

Rose encontrará várias pessoas estranhas nessa jornada, começando, ainda na Inglaterra, pelas três que são uma, as Hecateae, que tentam alertá-la para o que está para aparecer em seu caminho. Chamo a atenção para o fato de que elas confirmam serem aspectos não apenas das Moiras, mas também das Fúrias, algo de que falei no arco passado e um ponto importante que ainda discutiremos hoje, um pouco mais adiante.

Na busca pelo irmão - que é, como já sabemos, prisioneiro de Brute e Glob e vítima de severo abuso físico por seus tios - Rose conhece Gilbert (Fiddler’s Green) e não demora muito a cruzar o caminho de Coríntio. À primeira vista, essas coincidências parecem ser um pouco demais, quase um forçar a barra, porém as coisas passam a fazer sentido quando Sonho explica o quê é Rose: um vórtice, alguém capaz de quebrar as barreiras entre os sonhadores e mesmo entre sonho e realidade.

Sendo um vórtice, Rose torna-se, por um breve momento, o centro do Sonhar. Sonhos não precisam de explicações, eles desdenham da lógica, não estejam sujeitos à lei da causalidade. De certa forma, Rose ‘gera’ enormes quantidades de coincidência, atraindo particularmente criaturas feitas da matéria dos sonhos.

Rose, contudo, não representa um desafio apenas para as leias da lógica: um vórtice, se não destruído, pode consumir mundos inteiros - algo que já aconteceu antes, como Sonho nos confessa. E isso é um ponto bem interessante.


Até aqui, nossa compreensão de Morpheus é de alguém que cumpre as regras, que assume suas responsabilidades, exceto… exceto pela história que nos é narrada no prólogo de Casa de Bonecas.

Em Contos na Areia, reencontramos Nada, que conhecemos prisioneira no Inferno em Prelúdios e Noturnos. Descobrimos que Sonho - Kai'ckul, como é chamado pelo povo da rainha Nada - apaixonou-se por ela e, contra as regras, tentou fazê-la sua rainha. Ele desafiou as regras uma vez, por desejo. Poderá ter isso acontecido mais de uma vez?

Por agora, é mais uma pergunta que ficará em aberto.

A história de Nada é importante não apenas pelo breve vislumbre que temos do caráter de Morpheus. Ela é uma história vinculada a um ritual, com uma forte estrutura calcada na tradição oral - rimas e repetições, o ritmo próprio que associamos ao que chamamos de contos de fadas. E a simbologia dos contos de fadas está fortemente presente nesse arco.

Gaiman coloca uma estranha ênfase no fato de que a versão das mulheres para a história da Rainha Nada é diferente da versão contada pelos homens. Considerando o número de vezes que Nada diz ‘não’ e os extremos a que ela chega para fugir de Kai’ckul - e a violência simbólica do ataque à gazela - é provável que na história delas, a noite de amor do Senhor dos Sonhos e da rainha humana seja na verdade um estupro.


O conto narrado pelo ancião mostra Kai’ckul como um apaixonado capaz de desafiar todas as regras para fazer de Nada sua rainha. Mas, sabendo que Sonho aprisionou Nada no Inferno porque ela lhe disse não certamente desmonta a imagem galante que o avô poderia querer passar.

É o que acontece na história de Chapeuzinho Vermelho, que Gilbert conta a Rose alguns capítulos adiante: a versão mais antiga da tradição oral, antes de homens passarem-na para o papel, envolvia a sugestão de violência sexual - e Rose, representando Chapeuzinho Vermelho, sofre ameaças de violência sexual em dois momentos distintos da história, uma das quais por um serial killer que usa uma camiseta com a estampa do Lobo Mau.

E é também o que acontece com a Bela Adormecida, que está fortemente presente na figura de Unity, a avó de Rose. Na versão pré-irmãos Grimm, a Bela Adormecida não é desperta com um beijo: ela é estuprada pelo príncipe, engravida e dá à luz a gêmeos e só acorda muito depois, sem entender nada do que aconteceu.

O príncipe da Bela Adormecida, como o Lobo de Chapeuzinho Vermelho e Sonho/Kai’ckul são todos aqui dominados pelo desejo. E Desejo dos Perpétuos é o grande personagem de todo esse arco, o mestre das marionetes que tem puxado os fios de todos os personagens.

Desejo - e talvez também Desespero, sua irmã gêmea - é o responsável pelo que aconteceu entre Sonho e Nada. O que ele pretendia ganhar com isso, é algo que só podemos cogitar. Não acho que seja uma simples vontade de sobrepujar os irmãos mais velhos, ou se envolveriam na história Destino e Morte. Fora que Desejo não poderia simplesmente, não sei, conquistar o reino do Sonhar para si.

Se Desejo é gêmeo de Desespero, penso que ele é também nascido do sonho e talvez seja essa relação de subordinação imediata, mais que uma primogenitura, que tenha transformado Morpheus num alvo para seu irmão mais novo. Não se trata, em suma, de mero capricho passageiro: Desejo quer forçar Sonho a quebrar as regras que regem os Perpétuos, e a quebra dessas regras têm consequências sérias.

Casa de Bonecas nos dá ao menos três dessas leis absolutas: Perpétuos estão proibidos de amar mortais (amar e não simplesmente desejar, é uma diferença pertinente a ser feita); eles não podem matar mortais a não ser no cumprimento de seus deveres (no caso de Sonho, a proteção do Sonhar, que é seu principal dever) e ele não devem derramar sangue de sua própria família.

E eis aqui a explicação para a importância que foi dada às Erínias, que já apareceram duas vezes ao longo da história, uma em cada arco.

As Erínias, ou Fúrias, ou ainda, as ‘benevolentes’ aparecem em várias histórias como vingadoras em nome dos deuses. Talvez sua principal participação na mitologia seja lembrada pelo ciclo de peças escritas pelo dramaturgo grego Ésquilo: a Oresteia. A história começa com o assassinato do rei Agamemnon, ao voltar da Guerra de Tróia, por sua esposa, Clitmnestra. Clitmnestra, por sua vez, é assassinada em vingança pelos filhos, Orestes e Electra. Orestes é então perseguido pelas Fúrias, que desejam não apenas matá-lo, mas despedaçá-lo. Para fugir delas, ele recorre a um tribunal de deuses, que empata… sendo salvo ao final pelo voto de Palas Atena/Minerva (sim, é dessa história que deriva a expressão ‘voto de minerva”).

Por analogia, podemos concluir que se Sonho tivesse matado Rose - cumprindo seu dever - ele estaria incorrendo na fúria das Erínias e, por consequência, dando causa à sua própria morte.

Se o plano de Desejo é matar Sonho, creio que o problema não se trata apenas da natureza de Desejo, mas da existência de uma rixa mais séria entre os dois, algo que tenha acontecido no passado para provocar a intensidade e o foco de um personagem sobre o qual nos é dito ser ‘uma criatura que vive no momento’. Considerando a natureza dos Perpétuos, pensem em conflitos familiares cozinhados a fogo baixo durante milênios, finalmente explodindo. Tem um enorme potencial destrutivo, não é mesmo?

Essa teoria também nos leva a concluir que embora seja imortal para o passar do tempo, um Perpétuo pode ser morto.

Talvez essa seja uma explicação para o ciclo de violência que cerca todo esse arco e que é quebrado, em dois momentos, por duas mulheres que escolhem o sacrifício. Só que o sacrifício de Nada tem por consequência sua prisão, ao passo que o sacrifício de Unity a liberta de uma vida mortal que ela nunca chegou realmente a viver, salvando a neta e ainda lhe dando uma segunda chance de existência, dentro do Sonhar.

Acho interessante que essa decisão de Unity signifique uma libertação tanto para ela quanto para Rose e isso me faz pensar no título do arco - que é título também para uma das peças mais debatidas e significativas do século XIX. Não sei se era intenção do Gaiman essa intertextualidade (eu tendo a ver tudo que ele escrever como proposital, mas quem vai saber?), mas a Casa de Bonecas de Henrik Ibsen, com sua protagonista feminina que reconhece o fato de ser uma boneca numa casa de bonecas a ser controlada primeiro pelo pai, depois pelo marido e que decide deixar tudo aquilo que conhece e esperam dela pela oportunidade de descobrir quem realmente é, certamente me faz pensar no papel que todos esses personagens têm como joguetes de Desejo,bem como na busca de identidade e a vontade de mudança das mulheres da história.

Isso nos lembra mais uma vez de Morpheus, ao descer ao Inferno em Prelúdios e Noturnos, que perguntado se os anos de cativeiro o mudaram, responde que não, ele não acredita que o tenha feito. Contudo, comparando sua atitude entre o prólogo e o final de Casa de Bonecas, algo parece ter mudado em seu caráter, ainda que ele não tenha consciência disso.

Talvez por isso, para sublinhar essa mudança de atitudes, tenhamos o capítulo ‘entre-séries’ (quase um entreatos se fosse no teatro), Homens de Boa Fortuna. Ao longo de quase seiscentos anos, de 1399 a 1989, Sonho se encontra na mesma taverna com Rob Gadling - inicialmente, a título de mera curiosidade, mas ao final, reconhecendo a existência de uma verdadeira amizade entre os dois.


Que Morte seja a responsável por convidar o irmão à taverna, e que ela ache que seria bom para Sonho ver humanos em termos que não sejam o dele próprio, também faz um ponto de interessante contraste à linha principal da narrativa de Casa de Bonecas. Como Desejo, Morte força o irmão ao convívio de humanos, mas a sua influência é mais benéfica - ela não deseja manipular Morpheus, mas sim fazê-lo enxergar para além de si mesmo.

Rob é um personagem muito interessante nesse experimento. Ele tem uma extraordinária sede de viver e de passar por novas experiências, está sempre enxergando progresso e oportunidade. Mesmo no sofrimento, ele não quer a morte - não por medo do que exista do outro lado, mas porque ainda existe muito que ele ainda não experimentou.

Se Morte sabia quem era Rob antes de entrar naquela taverna, ela fez uma escolha bem acertada de amigo para seu irmão: para Sonho, Rob é constância e otimismo, uma lufada de ar fresco numa existência de dever e controle que deve se tornar repetitiva após alguns milhares de anos.

Casa de Bonecas continua muito bem o que se iniciou em Prelúdios e Noturnos e sobe as expectativas para o que virá a seguir. Algumas respostas são dadas, mas há muitas questões ainda a serem desvendadas. Mas, bem, estamos ainda no começo, não é mesmo?

Daqui a duas semanas nos encontramos no terceiro arco então, Terra dos Sonhos. Não esqueçam de participar do debate no Pipoca Musical e também na comunidade All About Gaiman.


A Coruja


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4 comentários:

  1. Eu estou amando as suas análise sobre sandaman, super pontuais e relevantes. Apenas amando esse projeto

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    1. Obrigada, Helen! Também estou amando participar desse desafio, Sandman é daqueles livros (ou séries de livros) que toda vez que relemos encontramos algo mais para levar para a vida!

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  2. To amando seus textos <3333 Vc escreve maravilhosamente bem e gosto de como conecta as pontas. Isso é muito especial e suas análises estão enriquecendo demais o projeto <3 :D

    PS: de que cidade vc é?

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    1. Muito, muito obrigada, Raquel! Fico feliz, também sou fã tua XD

      Eu adoro fazer esse tipo de análise, embora costume me 'restringir' aos especiais de aniversário do blog (maio tem!). Eu já tinha escrito sobre Sandman antes cá no Coruja, mas sem realmente ir 'a fundo'. O projeto me deu a desculpa perfeita para afinal fazer algo que eu planejava há muito.

      Eu, especificamente, moro no Recife. O resto do zoológico está espalhado pelo Brasil e o mundo - a Ísis tá lá no Japão, porque ela é um gênio XD

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