23 de março de 2016

#LendoSandman: Prelúdios e Noturnos


Como já disse anteriormente tanto na página do Coruja no facebook como aqui mesmo no blog, estou participando de um projeto de leitura e debate de Sandman de Neil Gaiman, capitaneado pelo Pipoca Musical.

Há tempos estava querendo achar uma desculpa para reler toda a série - pensei em fazê-lo ano passado, quando chegou The Sandman - Overture lá em casa, mas quando olhava para todos os volumes ainda não lidos na estante, batia um certo sentimento de culpa… Fora que eu já tinha escrito extensamente sobre Sandman numa série de artigos em 2010.

No entanto, participar de um projeto que além da releitura ainda permitiria o debate da obra com outros leitores de Gaiman, e considerando ainda o cronograma bastante confortável para organizar a leitura, terminou por me convencer.

Não que eu precisasse de muito convencimento: fiquei tão empolgada com a coisa toda que até puxei a Dani para me desenhar uma Coruja Sonho, inspirada na Coruja de verdade em que Gaiman diz ter se baseado para criar os olhos do Príncipe das Histórias - ilustração essa que abre esse post e que servirá de selo para toda a jornada.

Mas, enfim, vamos ao que interessa! O primeiro arco de Sandman: Prelúdios e Noturnos.

Minha edição do primeiro volume é em inglês, embora eu tenha outros volumes em português...

O ano é 1916: estamos no auge da Grande Guerra e Roderick Burgess, líder da Ordem dos Mistérios Antigos, realiza um antigo ritual visando aprisionar a Morte. Contudo, algo dá errado no processo e outra criatura aparece no círculo de contenção, alguém que Burgess não demorará a identificar como o irmão de seu objetivo inicial: seu prisioneiro é Sonho dos Perpétuos.

A captura de Sonho traz consequências, claro: pelo mundo, pessoas mergulham num sono profundo do qual não voltam a acordar ou então se tornam simplesmente incapazes de dormir. Elas definham, passando pela vida sem realmente viver ou simplesmente enlouquecem. Fala-se no trauma da Grande Guerra; os médicos juram que se trata de um vírus.

Quebra da Bolsa, Segunda Guerra Mundial, bombas atômicas, Guerra Fria… os anos vão se passando cada vez mais desesperadores, a famosa “Era dos Extremos” no dizer de um famoso historiador. Roderick morre. Seu filho Alex herda seu lugar na Ordem, bem como seu terrível prisioneiro.

1988, mais de 70 anos após a noite em que Sonho foi confinado, ele afinal consegue escapar. Seu primeiro ato é vingar-se de seu captor, ainda que tal ação quase exaura por completo suas forças. Retorna então ao Sonhar, seu reino, e é acolhido por Caim e Abel - ‘a primeira história’ - de onde segue para seu castelo, o coração de seus domínios, que encontra em ruínas.

A ausência de Sonho causou uma devastação no Sonhar, além das consequências no mundo desperto. Para conseguir resgatar seu reino e suas força, ele precisa reencontrar seus três objetos de poder, que lhe foram tomados quando foi preso: a algibeira com areia dos sonhos, o elmo e o rubi.

Sério, Sonho, você nem desconfia do que pode dar errado quando se pergunta se pode dar errado?

Após invocar as três que são uma, as Hecataea, Sonho tem pistas suficientes para começar sua busca, iniciando a jornada com uma visita a ninguém menos que John Constantine, que estaria na posse de sua algibeira.

O elmo, ele encontrará no Inferno, num dos melhores momentos da história - um momento que define praticamente toda a série - e pela pedra dos sonhos, seu poderoso rubi, ele tem de batalhar com John Dee, o Doutor Destino. E assim, após uma dolorosa e estranha jornada, Sonho recupera seu poder e pode começar a consertar tudo aquilo que se degringolou em sua ausência.

Esse primeiro arco de Sandman, em especial os capítulos que envolvem a jornada de Sonho em busca da algibeira, do elmo e do rubi, são repletos de alusões e intertextualidade. É uma referência cruzada praticamente a cada página: os personagens da DC são óbvios, de Constantine à Liga da Justiça; Batman e o Asilo Arkham.

Mas Gaiman vai um pouco mais fundo que isso e se aproveita dos ganchos que lhe são dados pela própria DC. O melhor talvez seja a figura de John Dee - o Doutor Destino que se apresenta como cientista tem o mesmo nome do astrólogo, alquimista, filósofo ocultista, mágico e conselheiro da Rainha Elizabeth I, um dos mais interessantes e polêmicos personagens da Idade Média.

O John Dee original deixou vários escritos sobre ciências ocultas, citando, entre outras criaturas, um certo demônio chamado Choronzon. E Choronzon é justamente o nome do demônio com quem Sonho duela no Inferno. Conhecendo o estilo de Gaiman, improvável que seja essa uma coincidência...

O Paraíso Perdido de Milton e A Divina Comédia de Dante também parecem óbvias fontes para a criação do capítulo Uma Esperança no Inferno. E o Jogo da Realidade pelo elmo, guardadas as devidas proporções, lembra o duelo de Merlin e Madame Min em A Espada era a Lei.


A figura do Sandman já existia como personagem da DC antes de Gaiman assumir o quadrinho: em suas origens, ele era o milionário Wesley Dodds, um justiceiro que usava uma máscara de gás para esconder o rosto e uma arma de gás do sono para sedar criminosos. Antes da DC, porém, o ‘Homem de Areia” era personagem do folclore do centro e norte da Europa, tendo servido de inspiração para um dos mais famosos contos de E.T.A. Hoffmann em 1816 e ressurgindo, em 1841, nos contos de fadas de Andersen.

Que o Sonho de Gaiman deva mais ao folclore que ao personagem clássico da DC não é surpresa - qualquer um que já tenha lido algo do Gaiman sabe que folclore e mitologia são a base fundamental de quase tudo que ele escreveu. Mas é surpreendente a extensão que toma essa inspiração na série Sandman, mesmo partindo apenas desse primeiro volume.


Prelúdios e Noturnos abunda em referências mitológicas, com ênfase nesse primeiro momento na tradição judaico-cristã. Abel, ao se apresentar a Sonho, diz ser parte da ‘primeira história’, numa clara referência ao Gênesis bíblico. E do Gênesis estão quase todos ali: Eva, que surge apenas de relance; Caim e Abel que continuam a reproduzir o primeiro assassinato; e o próprio Lúcifer, o anjo caído, rei dos Infernos.

Que Abel se refira a Sonho como Príncipe das Histórias e a si mesmo como a primeira história é algo significativo, vez que ele introduz aqui de forma muito sutil um conceito que impregna quase toda a obra do Gaiman: a origem da religião é a origem de contar histórias. Esse é um conceito de que gosto muito e que é muito utilizado por Pratchett e também serve como base para outra série em quadrinhos de muito sucesso: Fábulas, do Bill Willingham.

A nota dissonante mitológica fica aqui pela presença das três bruxas que servem de Oráculo. A tríade de Donzela, Mãe e Anciã não é tipicamente associada às religiões patriarcais a que pertencem os personagens do Gênesis. Versões delas podem ser encontradas entre nórdicos e celtas, mas os nomes que Sonho lhe dá são ligados aos mitos gregos.

Clotho, Lachesis e Atropos, são os nomes que ele usa em sua invocação, as Moiras que enxergam o Destino de deuses e mortais, e que, curiosamente, Sonho também chama de as Três Graças, epíteto usado para um outro importante trio mitológico: Alecto, Megera e Tisífone, as Fúrias.

Considerando a forma como ele mistura as imagens das bruxas, como se evidencia que as três são uma só, as Moiras de Gaiman podem muito bem exercer também a função de Fúrias. Agora, as Fúrias, ou as Graças, ou ainda as Benevolentes são personagens importantes de uma série de peças do teatro clássico grego, especialmente do ciclo da Oresteia e relendo agora esse volume, não posso deixar de pensar que a aparição delas aqui é um prenúncio do que nos espera ao final dessa série.

Às Fúrias e à mitologia grega sei que voltaremos em arcos posteriores e não falarei muito mais sobre o assunto para não adiantar a história. Continuemos...

"Eu sou Esperança"

Como já disse antes, o capítulo em que Sonho viaja ao Inferno é um dos melhores e mais importantes momentos desse primeiro arco da série. O duelo entre Sonho e Choronzon se revela não como uma luta de poderes estrondosos, mas num plano bem mais subjetivo: o da imaginação.

Cada um deve contrapor ao outro algo que lhe seja superior, um conceito que seja capaz de ‘devorar’ o outro, numa rápida série de respostas que se segue de forma quase ritualística até a cartada final de Sonho: “Eu sou a Esperança”.

A frase de Sonho não é apenas um jogo nesse momento. Não é uma coincidência que os anos de aprisionamento dele representem uma das épocas mais tensas e desesperadoras da História. O século XX foi marcado por duas Guerras Mundiais, várias convulsões sociais como a quebra da Bolsa e o espectro da guerra nuclear representado pela dicotomia entre EUA e URSS.

Ao escapar, Sonho traz consigo de volta a esperança: em 1988 já se estavam em conversas para dar fim à Guerra Fria, e um ano após ele deixar a prisão dos Burgess, ocorre a Queda do Muro de Berlim, um marco histórico representativo, justamente, de Liberdade e Esperança.

Contudo, há algo mais que Sonho encontra em sua viagem ao Inferno: a expectativa de Mudança. Sua resposta para Etrigan quando o demônio o recepciona, é que ele não acha que mudou, mesmo após tantos anos de cativeiro. Curiosamente, logo após essa resposta, Sonho é confrontado com uma jovem condenada chamada Nada, alguém que ele mesmo ordenou fosse presa no Inferno.

Não nos é dito que ofensa Nada fez ao “Rei dos Pesadelos”, mas essa é uma troca que nos permite observar que Sonho tem uma natureza bastante vingativa: ela é a segunda vítima que encontramos nesse arco de uma vingança de Sonho e é bom lembrar que ao amaldiçoar Alex Burgess, Sonho sabia que estava muito fraco, mas nem por isso adiou o que considerava ser uma justa contrapartida para seus anos de prisão.

A resposta para o apelo de Nada pode parecer confirmação de que Sonho nada mudou. Mas então, após recuperar todos os seus objetos de poder, encontramos o Perpétuo a alimentar pombos, em profunda melancolia.

E somos então apresentados à Morte.


Os sete primeiros capítulos de Prelúdios e Noturnos demonstram o vigor imaginativo de Gaiman e servem como um excelente arco introdutório, não apenas para o personagem, mas para as próprias intenções do autor para a série. Mas é o último capítulo, O Som de Suas Asas que faz esse volume ir de muito bom para espetacular.

Sonho está livre de novo, e recuperou seu antigo poder. Ele está pronto para retornar às suas atividades, para reconstruir seu reino e consertar o desarranjo que sua ausência causou. Contudo, ao reencontrarmos o Príncipe das Histórias aqui, ele não parece particularmente satisfeito com sua existência.

Tudo aquilo pelo que ele tanto ansiou em anos de cativeiro não é mais o suficiente para contentá-lo. Embora ainda não perceba, Sonho mudou, sim. Qual será o alcance dessa mudança e no que isso implicará para ele é algo que só descobriremos com o avançar da história.

Não há referências a personagens da DC em O Som de Suas Asas, sendo todo ele de interação entre Sonho e sua irmã mais velha. Morte faz Sonho enxergar além de seu marasmo, dando uma chacoalhada em suas crenças. Assim, ao acompanhar a irmã em ‘um dia normal de trabalho’, Sonho recupera seu próprio senso de propósito, completando assim o ciclo pelo qual passa ao longo de todo volume.

Morte é uma das personagens favoritas de praticamente todo mundo que conheço que tenha lido Sandman e não é à toa: para alguém que é a representação antropomórfica da morte, ela é extraordinariamente viva.

Em conclusão, tenho de dizer que Prelúdios e Noturnos é um ótimo arco e prenuncia muitos dos temas que se tornariam marca registrada do Gaiman. É uma história perfeitamente fechada, mas que dá margem à muita curiosidade sobre o que virá a seguir.

Agora é esperar abril para falarmos de A Casa das Bonecas.

E não deixem de participar do debate no Pipoca Musical e também na comunidade All About Gaiman.


A Coruja


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6 comentários:

  1. Enchi os olhos com essa análise, conseguiu acrescentar um monte de novas informações à obra!
    Não sabia sobre esse detalhe do John Dee e Choronzon, achei que ele apenas tinha reaproveitado o Dr. Destino da DC.
    Ai, Gaiman, Gaiman...

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    1. Gaiman é daqueles autores palavras cruzadas: se você prestar atenção, vai achar um milhão de referências... Sandman, especialmente, abunda desse tipo de efeito.

      O John Dee eu conhecia porque ele é parte de um período histórico pelo qual sou apaixonada: a Inglaterra de Elizabeth I. Acho que ele inclusive já foi citado outras vezes pelo Gaiman... ou talvez eu esteja me confundindo com a versão vilanesca do Dee que aparece nas Crônicas da Imaginarium Geographica... mas, seja como for, ele é um personagem histórico para além de interessante.

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  2. Eu simplesmente ameiiii essa análise, sinceramente não sei como deixei passar a referencia dos anos de aprisionamento do sonho com o período histórico em q ele se deu. É por isso q eu gosto de suas resenhas, sempre tem uma referencia/link q não percebemos inicialmente. TO acompanhando o projeto e amando profundamente!

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    1. Eu adoro ficar procurando essas referências escondidas, é tão interessante... e dá um significado a mais àquilo que estamos lendo, não é? Parece que tudo faz mais sentido.

      Continuemos em frente!

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  3. Eu já tinha lido Sandman a uns anos atrás, mas agora que sei as referencias do Gaiman, gosto ainda mais da serie *-*

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    1. É uma das partes mais divertidas, não é? Pra mim também está sendo uma releitura e o que gosto de fazer é ir percebendo as pistas que ele deixou do que ia acontecer mais à frente. Gaiman é sempre genial!

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