13 de outubro de 2015

Para ler: Frankenstein


Por que não morri? Por que não mergulhei no esquecimento e no repouso, eu que era mais miserável do que qualquer outro homem antes de mim? A morte arrebata tantas crianças na flor da idade, que são a única esperança de seus pais idosos; quantas noivas e jovens amantes estiveram um dia no auge da saúde e da esperança, e no outro tornaram-se comida para os vermes, apodrecendo num túmulo! De que materiais eu havia sido fabricado para poder resistir dessa forma a tantos golpes que, como o girar da roda, renovavam sem cessar minha tortura?

Uma erupção vulcânica na Indonésia, em 1815, bagunçou o clima do mundo até o ano seguinte – 1816 ficou conhecido como ‘o ano em que não houve verão’. Um grupo de amigos que tinha se encontrado por acaso numa região de veraneio na Suíça viu seus planos de aproveitar o verão irem por água abaixo com a chuva incessante causada pelo acontecimento do ano anterior – em vez de revigorantes caminhadas pelos Alpes, tiveram de ficar em seus bangalôs, lendo histórias de fantasmas para passar o tempo.

Esse grupo era composto por dois grandes escritores da época – o controverso Lorde Byron e o poeta Percy Shelley, além do médico do primeiro, John Polidori e da amante do segundo, Mary Godwin, então com 18 anos. Foi Byron quem sugeriu que eles escrevessem, cada um, um conto de fantasmas como os que estavam lendo. E foi assim que Mary – que ainda aquele ano se casaria com Percy, após o suicídio da esposa do poeta, passando a assinar como Mary Shelley – escreveu um curto romance sobre o cientista Victor Frankenstein, que obcecado pela idéia de criar vida, acaba por trazer ao mundo uma grotesca criatura com a qual dividirá um longo ciclo de vingança até que alcancem sua ruína mútua.

Talvez Frankenstein jamais tivesse de fato acontecido, não fosse pela sequência de fatos que se iniciou com a erupção do vulcão Monte Tambora. Ou talvez fosse apenas uma questão de tempo até que a jovem Mary decidisse colocar a pena no papel – afinal, ela fazia parte de uma linhagem de escritores importantes: seu pai foi o filósofo político William Godwin e sua mãe foi não apenas uma escritora de renome, como também uma das primeiras ativistas dos direitos das mulheres.

O fato é que naqueles dias chuvosos do verão de 1816, Mary escreveria não apenas um dos grandes romances do horror, como inauguraria um inteiro novo gênero literário: a ficção científica – algo que aparentemente esqueceram de avisar para a turma de nerds machistas preconceituosos como a que tentou manipular o Prêmio Hugo esse ano.

Já escrevi antes sobre esse clássico, mas trata-se de uma obra que bem merece releituras - Frankenstein ou o Prometeu Moderno se apoia em questões que ainda hoje estão bastante atuais: os limites éticos do progresso científico, a questão das aparências e do preconceito, bem como a relação do indivíduo na sociedade.

Victor Frankenstein faz aqui às vezes do Prometeu mitológico. Obcecado pela idéia de compreender as ciências naturais, desvendar os mecanismos da vida e da morte, Victor entra num ciclo auto-destrutivo de trabalho e isolamento, até conseguir reviver um corpo costurado por partes de cadáveres humanos.

Apenas após ser de fato confrontado com o fruto de seus esforços é que Victor compreende que cometeu um grande erro. Sua criação é um ser monstruoso e ao contemplar sua face, Victor é tomado pelo terror e foge, abandonando a cria ao deus dará.

O monstro desaparece no mundo, mas logo Victor se dará conta do rastro de destruição que ele pode deixar atrás de si. Mais que isso: as ações do monstro parecem propositalmente atingir a Victor naqueles que o cientista mais ama.

Destruição e morte são seguidas de juramentos de vingança, até que Victor e o monstro estejam presos num ciclo em que nenhum dos dois tem mais nada a perder e suas únicas ligações com o resto da humanidade são um ao outro.

Narrada em primeira pessoa, Victor tenta contar sua história de forma a escapar à culpa que lhe cabe nos acontecimentos que se seguem – ao longo de todo o livro ele tenta justificar seus atos como destino, algo sobre o que ele não tinha controle.

Desculpar Victor por seus atos justificando-o como uma vítima do destino é, contudo, uma falácia. Ele talvez não pudesse controlar sua reação quando o Monstro despertou, mas ele certamente não estava em qualquer tipo de transe hipnótico enquanto invadia cemitérios e roubava pedaços de cadáveres – algo que ele não fala expressamente em seu relato, mas é fácil de inferir, considerando que ele não podia simplesmente chegar no açougue e pedir um quilo de pares de olhos de todas as cores, duas rótulas e uma mão fresca.

Por outro lado, o monstro começa como uma criança e nasce sem qualquer senso de si mesmo, sem identidade ou instintos homicidas. Por sua aparência, o monstro é completamente alienado do resto da humanidade – mesmo quando tenta fazer o bem, é temido e rejeitado.

Sua constante experiência de abandono levam-no ao ódio e à destruição. A única coisa que o monstro deseja é ser aceito – sobretudo por seu criador. Victor, contudo, é incapaz de aceitar e encarar suas próprias falhas, falhas essas que estão todas estampadas na figura do monstro.

Talvez, mais que o terror causado pela aparência do monstro, o que Victor repudia de fato é sua própria imagem distorcida, o conhecimento de que foi capaz de passar por todos os limites morais e éticos em busca de sua obsessão. Sua aversão é ao fato de que, tendo criado o monstro, é ele o verdadeiro monstro da história.

Mais que uma história de horror, Frankenstein é uma tragédia da arrogância humana e sua mensagem, mais do que nunca, continua válida e atual.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)


A Coruja


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