30 de outubro de 2015

Heróis de Papel - Capítulo 25


Capítulo 25

Início de Outubro (Ano 4)

Alex,

Há tanto a se encaixar nessa carta, que não sei por onde iniciá-la...

Então será pela notícia mais leve, a de Galahad. Tínhamos uma grande leva de cães em nosso pelotão também. Não no início já que trabalhávamos primordialmente com missões silenciosas, muitas vezes secretas,. Mais para o fim da guerra, contudo, fomos reposicionados, e recebemos uma das matilhas. São excelentes criaturas, e tive a oportunidade de ver o treinador transformá-los em soldados corajosos.

Devo, entretanto, confessar que, ao ler seu relato sobre esse nobre parceiro, passei um bom tempo rindo da situação. Espero que não se ofenda, mas imaginei você fardado, em missão de infiltração, evitando qualquer ruído, olhando para seu companheiro com uma cara completamente séria e semblante tenso, pedindo o silêncio do qual precisa.

Mas seu companheiro olhava-o com uma expressão de quem não queria estar em outro lugar que não ali, praticamente sorrindo, com os olhos brilhando e a língua do lado de fora. Prestes a latir.

Obviamente, fiz o desenho. Mas terá de voltar para vê-lo, porque Marianne o viu também, e me fez prometer que não o enviaria para você. Se eu for resumir tudo o que ela disse em poucas palavras: “Você só verá o desenho se voltar para casa”.

Não olhe para mim, foi ideia dela. E tenho o péssimo hábito de não conseguir quebrar promessas...

Provavelmente porque foi assim que perdi Luka. Nunca mais fui capaz de voltar atrás em nada, ou de não manter minha palavra. Chega a ser engraçado, porque eu era muito bom nisso, em burlar minhas promessas. Entretanto, de repente, não consigo mais sequer cogitar a possibilidade.

Você adivinhou corretamente, ambos fazíamos parte do mesmo esquadrão. Luka era mais velho e por isso foi despachado primeiro, afora o fato de que ele já ocupava um posto alto no escalão do exército. Como disse, ele sempre fora brilhante e simpático. Eu o segui meses depois, após cumprir outra missão. Não sei se nossos superiores nos colocaram juntos sabendo de nosso parentesco, se foi coincidência, ou mesmo se foi o próprio Luka quem requisitou nossa designação conjunta. O fato é que, menos de meio ano após ser recrutado, já estava servindo no mesmo front que meu irmão mais velho, um oficial experiente e, eu diria, popular.

Luka sempre negou essa segunda descrição de sua pessoa, mas ele tinha a capacidade de atrair todos ao seu redor, quer com usual boa disposição, quer com suas inúmeras habilidades. Ao passo que eu, embora tivesse certos dons também, jamais poderia equiparar-me a ele. Talvez por inveja, talvez porque quisesse sua atenção, às vezes eu o contrariava. Obviamente, nada que pudesse comprometer uma missão, afinal, também fui criado como soldado. Pode interpretar como um menino se rebelando contra os pais, pois foi, na prática, Luka quem me criou.

Assim, quando a guerra estava próxima do fim, prolongando-se somente em alguns fronts, dias antes de voltarmos para casa, já relativamente tranquilos, eu prometi que não sairia do acampamento. Luka fez-me prometer porque havíamos sido informados que o acampamento fora rodeado de minas pelos soldados adversários os quais haviam finalmente se rendido alguns dias antes. Provavelmente a intenção deles era nos derrubar e caírem junto, uma espécie de último recurso. Contudo, como ninguém deixara o campo desde que os mesmos haviam sido capturados, não houvera nenhum incidente que revelasse este fato.

Aparentemente aquele grupo esperava que os trataríamos como lixo, como escória. Ficaram surpresos quando tratamos os prisioneiros como seres humanos. Acontece, porém, que um dos presos era bastante religioso e não queria sua consciência pesada com isso. Pelo que entendi, o pelotão adversário, inclusive este rapaz, era quase todo formado por jovens bastante religiosos, e foram manipulados a pensarem que éramos hereges, ruins e o pior que há na face da terra. Logicamente, acreditavam que se fossem capturados, seriam tratados terrivelmente e torturados única e exclusivamente para o nosso bel-prazer. Assim, estavam dispostos a morrerem, se isso significasse que o mundo estaria livre de nós.

Não vou negar que fiquei bastante surpreso com esta revelação. Aliás, a maior parte de nós. Tanto que parte de nosso pelotão não acreditou, e, então, deduziu que nossos prisioneiros estavam ou tentando ganhar tempo, fazendo com que não pudéssemos avançar, ou jogando uma espécie de jogo psicológico, talvez para que fossem libertos. Alguns, inclusive, suspeitavam que era apenas por despeito, vez haviam perdido não só aquela batalha, como a guerra como um todo. Nesse último caso, nossos adversários estariam mentindo sobre as tais minas apenas para verem em nossos rostos alguma preocupação ou desespero.

Não estou nem um pouco orgulhoso, obviamente, em dizer que o líder dessa última linha de pensamento era eu. E, pior, apesar de ter prometido a meu irmão que não colocaria os pés para fora do acampamento até que fosse confirmado que era seguro, fiz exatamente o oposto. Resolvi que não queria esperar reforços especializados, que eu era capaz de achar as tais minas, se é que elas existiam, e de traçar um caminho seguro, ainda que não tivesse treinamento algum para tanto. Na verdade, mais que isso, queria mostrar que, uma vez na vida, eu estava certo – e não havia mina alguma –o que significaria que Luka estava errado.

Mais uma vez, creio que fiz isso por querer a aprovação dele, ou algo assim. Eu não entendo essas coisas, não sei exatamente por que, e não confio inteiramente nos médicos que me acompanharam depois. O mais terrível é que – e eu sabia disso já naquela época – meu irmão nunca negara que tinha orgulho de mim. Sempre fazia questão de demonstrar isso, e nunca me negou um abraço, ou qualquer outro gesto de afeto.

Ciente de tudo isso, contudo, por qualquer que fosse o motivo, dirigi-me aos limites de nosso perímetro e o ultrapassei. Cautelosamente, dei passos calculados, pois, por mais que não acreditasse que houvesse qualquer perigo ali, também não queria ser totalmente imprudente – embora isso seja perfeitamente argumentável. O fato é que, poucos minutos depois, ouço a voz de meu irmão gritando e me pedindo para retornar ao acampamento. Acho que você já pode deduzir que não lhe dei ouvidos, e continuei minha idiota exploração. Próxima coisa que sei, quando me virei novamente, meu irmão já havia percorrido metade da distância, e, pelo braço estendido, pretendia puxar-me à força de volta.

Mas ele não teve essa chance, porque, mal pisquei, e, no instante seguinte, Luka estava carbonizado no chão. Nenhuma palavra final, nenhum último suspiro, nada muito heróico. Num momento ele estava lá, forte, saudável, preocupado e vivo, mas, dois segundos, uma mina escondida e uma explosão depois, nada disso era verdade. Um instante depois, estava eu imóvel vendo o corpo de meu irmão completamente negro, seco... e morto.

Tenho certeza que ele me amaldiçoa até hoje do outro mundo, ou, ainda que isso não seja verdade, meus pais o fazem. E não posso sequer me ressentir deles por isso, porque certamente o mereço. Na verdade, daria tudo, faria qualquer coisa para trocar de lugar com Luka, mas, infelizmente, isso não é uma opção. Por isso, dediquei o resto de minha vida a tentar ser o homem que ele sempre esperara. Tentei espelhar-me nele o máximo que pude, tentei honrar sua vida. Mas isso é virtualmente impossível com o peso de sua morte, e quanto mais eu tentava cumprir essa meta, mais me lembrava do porquê ela emergira, e mais eu mergulhava na tristeza.

Anne tentou me ajudar o máximo que pôde, mas quanto mais eu e meus pais me recriminávamos, mais ela ficava exasperada. Até que, um dia, minha pobre esposa deu-me um ultimato: ou eu pelo menos tentava sair do poço em que eu me imergira, ou ela desistia e me deixava. Anne sempre foi uma pessoa perceptiva, e sempre me amou. Tenho certeza que ela percebeu que, se continuasse ao meu lado, eu jamais melhoraria. Precisava do choque de sua partida para poder retomar meu rumo.

Como sempre, minha ex-esposa estava certa. Foi somente quando ela foi embora que eu realmente comecei a me recuperar, ainda que só um pouco. Voltei a sair, voltei a tentar me aproximar de pessoas, mas nunca voltei a ser o que era. Isso jamais será possível. Entretanto, preciso agradecê-lo profundamente. Foi somente com essa nossa troca que, aos poucos, realmente consegui me aproximar mais de meu objetivo. "Conhecer" alguém oposto a mim em tantas formas, masque ainda assim desejava se comunicar comigo, e, aos poucos, tornou-se um verdadeiro amigo, fez-me melhor do que possa imaginar.

Eu sei que você já disse inúmeras vezes que eu posso compartilhar o que quer que seja. Mas como poderia fazê-lo, tendo essa vergonhosa culpa em meus ombros?

Entretanto, meus pais morreram hoje, dois dias após eu receber sua mais recente carta. Mesmo que mal tenham participado de minha vida, menos ainda após a morte de Luka, foi-me de qualquer forma um golpe enorme. Mas, pior que isso, foi ser praticamente expulso do velório pelos parentes, cuja maioria compartilha da opinião de que deveria ter morrido no lugar de Luka, ou junto, ou depois, ou...Enfim, acho que já entendeu a opinião deles. Sendo bem honesto, o único motivo do porquê não o segui, foi por acreditar que compensaria meu irmão mais eu permanecesse vivo, ainda que apenas fisicamente. Boa parte da minha alma morreu com ele.

Por muito tempo, meu trabalho com os bombeiros, salvando vidas, foi meu único motivo de seguir em frente, afora minha amada Anne. Quando, entretanto, o acidente com minha mão incapacitou-me, cheguei ao fundo do abismo, e, por consequência, perdi minha esposa também.

Alex, você mencionou inúmeras vezes que poderia "contar"-lhe qualquer coisa. Relutei muito em fazê-lo devido à natureza da situação, mas esses eventos recentes ameaçam apagar o progresso que os últimos anos têm-me proporcionado. Eu sinto muito por jogar essa história sobre você, mas preciso dividi-la, porque sentia, até agora, como se estivesse diretamente mentindo para um amigo. E, como disse antes, tornei-me incapaz de fazer esse tipo de coisa.

A verdade é que, no fim das contas, por muito tempo fui mais só do que você, visto que, ao menos, tinha Alice ao seu lado. Quando perdi Anne, dei-me conta do quanto realmente estou só nesse mundo, mesmo havendo parentes e amigos de outras datas. Deste segundo grupo, alguns certamente renovariam nossos laços se eu der o primeiro passo, mas, mesmo agora, não sinto que o mereça. Fá-lo-ei mais à frente, talvez. Por hora, preciso apenas de nossas cartas. O que importa disso tudo é que foi por entender a sua solidão que insisti em procurar Alice. Sei que você se perguntou por que eu o estava fazendo, vez que mal o conhecia. Pois bem, foi por querer oferecer alguma felicidade a alguém que sentia algo semelhante a mim.

Desculpe-me a longa digressão. E peço ainda mais desculpas por trazer um assunto como esse, quando você mesmo ainda se recupera de tantas experiências. Os campos de massacre que descreveste, por exemplo, não soam como visões que possam ser esquecidas tão cedo. Mas estarei aqui quando voltar, se precisar de alguém que entenda um pouco do que significa enfrentar a própria sombra.

Estou, nesse exato momento em que escrevo esta carta, olhando seus últimos presentes. A foto de Galahad é obviamente minha preferida. Esse "resultado de uma convivência internacional" é realmente um excelente espécime, e estou contente que tenha um companheiro agora. Ao mesmo passo, não nego sentir um pouco de inveja do mesmo, vez que pelo menos ele pode servir às forças aliadas.

O navio rendeu-me algumas risadas. O pequeno recado que o acompanha, ainda mais. Bem, pelo menos já tenho em minhas mãos as evidências do porquê tornar-me-ei um pirata. Precisarei explicar-me quando, eventualmente, for pego pela guarda costeira ou pela marinha. Direi que fui mesmerizado.

Embora eu conheça a história de Pinocchio, confesso que nunca a li. Você recomenda, então? E, se positivo, por quê? A marionete eu vesti de pirata, e ela se encontra posicionada com uma perna sobre o baú. Meu tesouro foi tomado por um pedaço de pau. Acho que a Fada Azul encontrou-o, afinal... Ou talvez foi uma das fadas da Terra do Nunca, onde também há piratas e outros perigos.

E não pergunte onde eu achei roupa de pirata para a marionete. Acho que nós dois sabemos essa resposta...Essa mesma fonte já havia dito que a prometida limonada viria acompanhada de biscoitos. Creio ser essa uma boa deixa para perguntar que sabor(es) você prefere.

Quanto ao bife, podemos procurar um bom lugar que o faça. Provavelmente, contudo, você já dever ter um lugar específico em mente. O acompanhamento será o chá ou vinho? Ou cerveja? Ou outra bebida? Estimulo-o a pensar em outras coisas que deseja ao voltar. Mesmo que Alice infelizmente não faça mais parte de seus planos, e que, de fato, jamais se veja livre da guerra em que participa (para isso, posso atestar), quanto maior a lista de atividades a se fazer quando retornar, melhor sua adaptação será. Do contrário, não fará outra coisa que não se recolher ao seu aposento, relembrando dores e pesadelos.

Siga meu conselho, por favor. Conheço bem essa parte. Vi inúmeros colegas, sobreviventes como eu, sucumbirem aos seus pesadelos. A maior parte não se ocupava, e, portanto, não conseguia dar novos passos. O que eles viveram, mesmo que estivesse finalmente no pretérito, passou a dominar cada instante, acordado ou não. As memórias de antes do conflito – as mesmas que tantas vezes os apoiaram durante nossa luta pelo país e pelas nossas vidas – foram substituídas por estrondos, gritos, explosões e dores. Essa última é terrível: mesmo quando se consegue recuperação total – uma raridade em si – às vezes se sonha com a dor outrora sentida, como se ainda houvesse algo errado, e não há remédio que desapareça com a mesma.

Alguns de meus companheiros morreram, outros se tornaram quase corpos inanimados. Poucos conseguiram seguir suas vidas. Eu quase me torno parte do primeiro grupo, não fosse por Anne e a lembrança de Luka. Assim, repito: faça uma lista de coisas para fazer, de lugares para visitar, de sabores com os quais se refamiliarizar. Quanto mais atividades tiver, menos tempo terá para deixar que o atual período de sua vida domine também seu futuro.

Abraços,

David


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