4 de novembro de 2014

Para ler: The Very Best of Charles de Lint

Há histórias e depois há histórias. Aquelas com qualquer valor mudam sua vida para sempre - talvez apenas de uma forma pequena, mas, uma vez que você as tenha ouvido, elas serão sempre uma parte de você. Você as alimenta e as passa para frente, e compartilhá-las só faz você se sentir melhor. As outras são apenas palavras em uma página.
Descobri Charles de Lint após ter lido alguma das inúmeras antologias de contos de fadas modernos que andei colecionando por uma época. A história dele na antologia me impressionou o suficiente para que eu decidisse dar uma olhada no que mais ele tinha produzido – e quando bati o olho nesse volume e em sua sinopse, decidi que era uma boa idéia começar por aqui.

Afinal, The Best of Charles de Lint reúne vários dos contos que compõem sua obra principal (os vinte e tantos volumes de fantasia urbana que se passam na cidade de Newford) escolhidos não por editores, mas por seus próprios leitores.

Na minha experiência, a escolha e organização de antologias por editores na maioria das vezes deixa a desejar; indicações dos leitores, dos fãs que de fato amam aquele material, parecem-me uma aposta muito mais segura.

O que quero dizer com todo esse arrodeio é que, mesmo que você não tenha interesse em embarcar em uma série de mais de vinte livros – ainda que cada um deles tenha uma história independente e possam ser lidos sozinhos - The Best of Charles de Lint é uma leitura que vale muito à pena primeiro para conhecer um dos grandes mestres modernos da fantasia (sério, eu não estou exagerando, o cara é fantástico e um dos responsáveis pela criação do gênero fantasia urbana), segundo porque é capaz de se sustentar sozinho sem necessidade de conhecimento prévio de Newford e terceiro porque não há uma única história nesse volume que não te prenda.

O estilo de Charles de Lint me lembrou muito o do Neil Gaiman, mas há algo um pouco mais leve em Lint, especialmente em suas histórias ligadas a Faerie, o mundo das fadas. Embora os dois volta e meia atravessem o limiar entre horror e fantasia, Lint me parece se focar mais no mistério, enquanto que Gaiman não tem medo de mergulhar de cabeça nos pesadelos.

Normalmente tenho certa dificuldade em ligar a ‘suspensão de descrença’ em livros de fantasia urbana – acho tanto mais difícil acreditar em magia num universo cercado de luzes e sem grandes mistérios. Consigo fazê-lo quando essa magia está ligada a um submundo, ao decrépito, ao sujo e ao estranho – e o primeiro autor que me vem à cabeça nesse aspecto é China Miéville, que é um mestre em utilizar essa questão.

De Lint, para minha completa fascinação, consegue entrelaçar mitologia e fantasia urbana sem ter de apelar para essa temática. Muitos de seus personagens que lidam com magia ainda estão à margem da sociedade, mas não no aspecto de que eles se esgueiram por esgotos e becos escuros escondendo-se do resto da humanidade, mas no sentido de que todos eles, de alguma forma, lidam com arte.

Sejamos sinceros: por mais que se possa dar valor a certas obras, existe um estereótipo do artista – especialmente aquele que não tem sucesso comercial – que o coloca como alguém fora do ‘padrão’. Se você disser que é um artista, provavelmente vão te perguntar ‘sim, ok, mas com o que é que você trabalha?’ e se a resposta continuar sendo a mesma, vão te rotular, no mínimo, de vagabundo. É uma grande decepção, mas na maior parte dos casos só se valoriza um artista quando já é tarde demais.

Seja como for... os personagens de Charles de Lint são artistas. São pintores, músicos, poetas. Eles enxergam a magia que existe em torno deles – tanto nas criaturas invisíveis do folclore (pixies e bodaques, dríades e gárgulas) como na vida como um todo. E a conclusão a que o autor parece querer que você chegue ao final de cada uma das histórias é que a arte é ela mesma um tipo de magia.

Os primeiros contos têm um quê de mitologia celta, com uma dríade, Meran, que é resgatada de sua árvore por um bardo, Cerin, com uma harpa que lhe foi dada pelos deuses. Os dois são personagens recorrentes primeiro no universo mitológico celta (afinal, há referência aos Tuatha) e depois no cenário urbano de Newford. Os dois são imortais e em algum ponto de sua história emigraram para a cidade, onde agora formam um duo de músicos que tocam em cafés e festivais.

Os dois têm amizade com Jilly Coppercorn, que é o fio condutor de muitos dos contos passados no cenário urbano. Jilly faz de tudo um pouco, mas sua paixão é a pintura. Ela aparece quase sempre tendo um bloco para esboçar aquilo que encontra pelo caminho e é uma personagem com um extraordinário dom para compaixão.

O conto In the House of my Enemy em que é o passado dela é revelado é, talvez, o mais pesado e desesperador de todas as histórias da antologia. É também um dos melhores. Tive de dar uma pausa na leitura quando cheguei ao final dele para tentar colocar as coisas em perspectiva.

Muitos dos contos evocam uma sensação de nostalgia e de melancolia. Lint não tem escrúpulos em falar de violência, depressão, sexo, drogas quando isso é necessário para o desenvolvimento da história, mas, mesmo quando isso acontece, existe uma nota de esperança.

Há muito tempo que eu não me apaixonava tão perdidamente por um autor. A qualidade das histórias, a capacidade de tecer lenda e realidade, a importância dada a arte, ao ato de criação e de contar histórias, o estilo leve, simples, mas encantador – tudo isso colocou De Lint no meu panteão de escritores favoritos. Próximo passo: arranjar toda a bibliografia dele.

Sim, vocês provavelmente ainda vão ler muito sobre ele aqui no Coruja...

Não existem finais felizes... Não existem finais, felizes ou não. Todos nós temos nossas próprias histórias que são apenas parte da História que entrelaça este mundo e Faerie. Algumas vezes nós entramos nas histórias uns dos outros - talvez por apenas alguns minutos, talvez por anos - e então saímos delas de novo. Mas, o tempo todo, a História continua.


A Coruja


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2 comentários:

  1. Parece muito bom! Só falta eu conseguir acesso pra ler :x
    Mas se é comparado a fantasia de gaiman, já conquistou meu interesse. Enquanto lia a resenha fiquei curiosa, ele não tem alguma graphic novel não? As histórias (e capas lindas) dele parecem que ficariam ótimas em desenho...

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    Respostas
    1. Não sei se tem Graphic Novel, mas parece que ele trabalhou em conjunto com o Charles Vess em alguns romances ilustrados. Dá para encontrar alguns dos livros dele no estante virtual. E, claro, sempre tem o better world books, que é onde faço a maior parte dessas minhas compras...

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