2 de setembro de 2014

Projeto Shakespeare: Como Gostais

Assim que se olharam, amaram-se; assim que se amaram, suspiraram; assim que suspiraram, perguntaram-se um ao outro o motivo; assim que descobriram o motivo, procuraram o remédio.
Harold Bloom, que é um dos maiores críticos literários especializados em Shakespeare na atualidade (eu sinceramente desconfio que ele mantém um altar para o bardo em sua estante), está sempre falando de Como Gostais e comparando todas as personagens femininas das outras comédias com a Rosalinda dessa peça.

Confesso eu que prefiro a Beatrice à Rosalinda, mas isso é porque eu gosto mais das trocas de farpas afiadas entre Beatrice e Benedict que da astuta manipulação da Rosalinda sobre Orlando – o herói não tem assim tanto espaço para ser desenvolvido a fim de que eu me importe com ele.

Isso não significa que Como Gostais não seja boa. Pelo contrário, alguns dos diálogos mais brilhantes de Shakespeare estão aqui. A história pode ser um tanto absurda – mas, bem, quase todas as comédias do bardo têm um pé no absurdo – mas toda a genialidade do autor está aqui, em seus jogos de palavras, na forma como ele manipula para mais ganhar a própria forma de fazer teatro da época.

Como Gostais tem por linha principal a história de Rosalinda e Orlando. Rosalinda é filha do antigo Duque exilado para a floresta pelo irmão mais novo, usurpador do trono. Por causa da amizade que existe entre ela e a prima, Celia, Rosalinda não partiu junto com o pai, permanecendo na corte. Orlando, por sua vez, é o filho mais novo de um nobre que fora favorito no governo do Duque Sênior e que agora sofre sob os desmandos provocados pela inveja de seu próprio irmão mais velho, Oliver.

Por várias reviravoltas do destino, ambos se encontram brevemente, se apaixonam perdidamente e em seguida têm de deixar cada um sua casa e seguir para a floresta e para também para o exílio: Rosalinda, por sua beleza e carisma, ameaça como uma sombra o reinado do tio, o Duque Frederico; Orlando, um campeão a despeito dos esforços do irmão em rebaixá-lo, está sob o risco de ser vítima de fratricídio.

Celia, que a despeito do pai, mantém o amor pela prima, decide fugir junto com Rosalinda, esta última vestida de homem, bem como o bobo da corte, Touchstone. Eles seguem para uma pequena fazenda às bordas da floresta, onde Rosalinda terminará por reencontrar seu amado, descobrindo no processo que por ele é amada também.

O problema é que Rosalinda ainda não pode ou não deseja se revelar... e apresentando-se como Ganimedes, se oferece para ajudar Orlando a se curar das flechas do ‘filho bastardo de Vênus’ – no processo, ensinando ao rapaz o que deve fazer para cortejá-la, uma vez que ela retorne às saias.

Orlando é um dos poucos heróis do bardo que não se apresenta como um babaca. Ele é jovem, impetuoso e tem consciência da própria ignorância, causada pelo desleixo do irmão mais velho: enquanto que seu irmão do meio foi mandado para estudar na corte, tendo os melhores tutores, Oliver manteve Orlando em casa, deixando-o crescer junto aos campesinos, sem lhe permitir reclamar até mesmo a parte da herança que lhe foi deixada.

Mas o fato de não ter tido uma boa educação não significa que Orlando não seja inteligente e que, tendo a oportunidade, não se apresente digno da tarefa. Há qualquer coisa de adorável ingenuidade em sua forma de declamar seu amor por Rosalinda. Ele é sincero, e constante – algo que não se pode dizer muito frequentemente dos protagonistas shakespearianos.

Acredito que os dois teriam o casamento mais feliz de todas as peças do bardo, contanto que Orlando não se importasse muito com o fato de que Rosalinda é, sim, bem mais inteligente que ele.

De todas as comédias, Como Gostais é sem dúvida a mais feliz, e a que cuida da paixão de forma menos grotesca. É uma história leve, com um ritmo rápido – gostaria muito de vê-la no palco – e divertida de ler. Creio ser uma boa pedida para quem está se aventurando pela primeira vez a ler as obras do bardo.


A Coruja


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