5 de agosto de 2014

Projeto Shakespeare: Antonio e Cleópatra

Vou contar-vos. A barca em que ela estava, trono fúlgido, as águas incendiava; sua popa era de ouro batido; as velas, púrpura, e a tal ponto cheirosas, que vencidos de amor os ventos todos se mostravam. Eram de prata os remos, que ao compasso se moviam de flautas, apressando com seus golpes as águas percutidas, como amorosas deles. Com respeito a ela própria, mendiga aqui se torna a melhor descrição. Deitada estava num pavilhão todo tecido de ouro, vencendo a própria Vênus, em que vemos a arte passar de muito a natureza. Ao lado dela estavam dois meninos rechonchudos e lindos — sorridentes Cupidos — que agitavam ventarolas de mil cores cambiantes, cujo sopro parecia deixar muito mais vivo o rubor de suas faces delicadas, que acalmar se propunha, desfazendo, dessa maneira, a um tempo, o que fazia.
Faz muito, muito tempo desde que li essa peça pela primeira vez – creio até que tenha sido um dos primeiros trabalhos do bardo que me chegou em mãos, presente de um cliente dos meus pais que era livreiro. Não me lembrava de absolutamente nada da história, exceto pela parte em que uma víbora aparecia em algum momento (...), de forma que o peguei para reler.

Fiquei absolutamente fascinada. Eu me esquecera da figura imponente de Cleópatra, em sua mais fascinante forma na poesia do bardo, ao lado de um Marco Antonio majestoso mesmo em meio ao vício, à “luxúria e o vinho”, que em seu grandiloqüente final nos remete ao famoso discurso de Julio César, quando vira toda a Roma contra Brutus e os outros assassinos de César.

Dos casais escritos por Shakespeare, Antonio e Cleópatra são os que mais estão um à altura do outro. Não que Antonio não seja um babaca como quase todos os outros protagonistas masculinos do autor – afinal, ele traiu a primeira esposa, depois traiu a própria Cleópatra com Otávia, depois largou Otávia e voltou para a rainha egípcia.

Sou capaz de entender o casamento com Otávia como manobra política, mas tenho minhas dúvidas se ele era mesmo necessário. Uma forma mais fácil de manter uma aliança com César Augusto, mas se desde o princípio Antonio sabia que acabaria por voltar para sua rainha, porque embarcar em tão temerosa aventura? Ele iria voltar para a “grande rameira”, Otávia retornaria a Roma humilhada e obviamente César se aproveitaria da chance para acabar de vez com o triunvirato e a ascensão do rival pela púrpura.

O casamento com Otávia é muito provavelmente a pior estratégica de um general que em tudo o mais sempre se destacara e se fizera brilhante. Não havia como competir a ‘frígida’ princesa com a voluptuosa rainha que personificava uma das culturas mais fascinantes e um dos reinos mais ricos do Império. Cleópatra, nas próprias palavras com que a ele se dirige o general romano, é mais que uma mulher, é o próprio Egito.

Ambos são personagens transcendentes. Toda a peça, do começo ao seu trágico fim é grandiosa, de tirar o fôlego – pergunto-me qual será a sensação de não apenas ler, mas assisti-la representada. Eu bem que gostaria da oportunidade...


A Coruja


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