16 de junho de 2014

Quem Conta um Conto (Junho): O Conto da Ísis || Viagem


Viagem


Não importava quantas noites se passassem, quantos anos… nada. Não importava o quão difícil eram seus dias e o quanto eles muitas vezes precisavam se esforçar só para conseguirem sobrevivê-los. À noite, todas as noites, eles sempre podiam contar com Robert para transformar a escuridão em alegria.

Só mesmo Robert poderia fazer isso. Só ela tinha tal poder.

Até onde conseguiam lembrar, até as mais antigas lembranças desde que foram colocados no mesmo orfanato, Robert sempre fora a cola que os mantivera juntos. Também fora ela quem afastara o medo incontrolável que dominava todos quando a noite caía. O grupo todo – sem exceções – passara do puro terror a amar a escuridão e o silêncio enganador que acompanhava o reino das estrelas.

Robert fizera isso com apenas um livro – o mesmo livro – ao longo de todos aqueles anos, pacientemente.

Nenhum deles era bobo o suficiente para achar que aquela publicação, por mais grossa que fosse, contivesse tantas histórias de forma a durar tantas noites. Não; não, mesmo. A essas alturas, todos já sabiam que o livro da capa vermelha, que repousava na cabeceira de Robert desde que eram filhotes, era apenas um símbolo.

O livro de contos era apenas uma representação de algo bem mais maravilhoso, algo que todos haviam aprendido a gradualmente respeitar, admirar, e amar.

Toda noite, após contar uma história de aventuras e intrigas, Robert depositava o livro em sua própria cabeceira. Por anos e anos, desde a primeira noite em que começara tal tradição, o tomo estava sempre naquele lugar. O livro poderia ser encontrado ali a qualquer hora, exceto à noite, quando personagens eram trazidos à vida pela voz hipnotizadora da benalha.

Nenhum deles havia tentado removê-lo, ou mesmo olhado o que o livro realmente continha – nem mesmo Milena, o mais travesso de todo o grupo. Inicialmente, continham-se para não estragar o prazer de ouvir as histórias contadas; eventualmente, para não estragar o feitiço – qualquer que fosse – que Robert lançava toda noite.

Às vezes eram princesas que o grupo ia salvar, às vezes era algum tesouro a procurar, às vezes era algo tão simples quanto buscar uma palavra numa página, mas Robert sempre fazia de tudo uma diversão. Ela tinha uma imaginação grande o suficiente para levar todos a qualquer lugar, de forma que, mesmo durante o dia, o grupo inteiro se via em lugares distantes e, ocasionalmente, até mesmo em tempos distantes.

A história seguia-os durante o dia, fazendo-se revivida repetidamente. Enquanto puxavam as cenouras que já estavam no ponto de serem colhidas, comentavam sobre os coelhos da última história, por exemplo. Às vezes era sobre as fórmulas matemáticas usadas pelo menino gênio, protagonista na narração da noite anterior à primeira vez em que eles tiveram de guiar o trator sobre a terra para o plantio, ou quando foram requisitados a erguer uma casa.

A verdade é que foram necessários anos, até que um deles percebesse que as histórias comumente tinham algo a ver com as árduas tarefas aparentemente avulsas que executavam todo dia. Isso porque Robert disfarçava bem, e muitas vezes eles eram convidados a participarem do enredo. Cedo ou tarde, todos eles haviam se identificado com um ou outro personagem, o qual acabava por se tornar (mais) um recorrente.

Um deles simpatizara com a astuta raposa de três olhos que escapou dos três reis demônios, e assim assumira tal papel. Outro deles gostara da micro-baleia voadora que rodara o universo algumas vezes em busca de seu amigo, a lebre negra de orelhas do tamanho do seu corpo (a qual que tinha particular desapreço quando esse fato era mencionado em sua frente), ambos tornando-se parte do grupo. Os trigêmeos acharam engraçada a dinâmica entre a tríade de ratinhos que derrotavam a grande águia destruidora de nações, e por aí em diante.

O caso mais interessante era, claro, Milena, o qual de alguma forma, identificara-se com a garotinha loira que usava a pele de jumento para enganar o resto do mundo em que vivia (porque de forma contrária, seria devorada pelos cavalos malvados e carnívoros). Ele de fato chegara a desenhar em uma folha de papel a cara do animal, e, a partir de então, sempre o usava às noites.

Assim, quase um ano depois desde a primeira leitura, todos eles já tinham uma segunda identidade. E, após o segundo ano, começaram a chamá-nas de “identidades noturnas”, vez que, àquela altura, eventualmente migravam do quarto que dividiam para o espaço maior que era o campo fora daquela casa. Uma vez que o grupo se reunia embaixo das estrelas (coisa que, até o fim do terceiro ano, acontecia toda noite), cada um assumia seu papel e eles entravam no mundo (ou tempo) da vez.

Fora assim que, por anos e anos, Robert os guiara por todos os trabalhos que eles executavam, um dia de cada vez. Como ela misturava os temas, os protagonistas e tudo o mais que podia, levou muito, mas muito tempo até que um deles percebesse que sempre que precisavam aprender algo novo, de alguma forma nada era tão difícil, porque seus personagens haviam feito algo parecido na noite anterior. Entretanto, na noite daquelas primeiras experiências, jamais era sobre a mesma coisa, ou algo muito parecido.

E assim a benalha – personagem que tinha galhos como chifres e cauda, a qual raposa Diego apontara como ideal para Robert, e, diante da sugestão da jovem, assim ficara – guiá-los-ia por anos e anos. Mesmo nos dias em que ela estava doente, que pareciam crescer discretamente, nunca deixara de envolvê-los, nunca deixara de levá-los numa viagem.

Até o dia em que ela simplesmente desaparecera.

Passaram-se dois dias inteiros, e nenhum sinal da leitora. Se eles estavam preocupados no primeiro dia, no segundo estavam desesperados. Mal haviam conseguido cumprir suas tarefas, o que lhes rendera boas broncas no tronco, mas não o suficiente para detê-los.

Na manhã seguinte, partiram todos em busca de Robert, carregando com eles apenas o livro vermelho.

Não tinham ideia de onde começar a busca, mas a lebre lembrou-os da historia em que um urso procurava seus filhotes, e começara procurando por pegadas, por rastros, por pistas.

Um dia de buscas depois, já famintos, cansados e longe de casa, mas sem querer perder tempo voltando e refazendo a caminhada no dia seguinte, decidiram acampar ali. A micro-baleia lembrou algumas histórias em que os personagens colhiam certas frutas ou caçavam certos animais para se alimentarem, e assim eles também fizeram. A raposa triocular lembrou em bom tempo do andarilho que procurava certas pedras e fazia fogo, e, depois de algumas tentativas, conseguiram aquecer-se.

Dois dias depois, os três ratinhos lembraram que a grande águia sempre atacava do alto, sempre vigiava das alturas, e sugeriram procurar de pontos mais elevados. Foi assim que o grupo inteiro se viu subindo a montanha que sempre estivera no horizonte de suas visões. Era a primeira vez que iam tão alto, tão longe, que viam o que estava além.

Mas não viram Robert.

Saíram procurando por onde podiam, por onde passavam, por todos os campos. Eventualmente, avistaram uma vila. Já se passara algum tempo – já haviam perdido noção de há quanto tempo não voltavam pra casa – mas todos lembraram imediatamente da história em que a princesa perdida encontrava uma vila. Nenhum deles jamais vira um lugar assim, e não sabiam exatamente o que os aguardava – exceto pelos grandes. Em todas as vilas das diferentes histórias de Robert, o fator em comum entre elas é que sempre havia os grandes por lá.

Os grandes eram uma civilização bastante diversa. Alguns deles, mesmo morando na mesma vila, passavam a vida inteira sem se conhecerem. Alguns se comportavam de um jeito, outros de outro... e sempre havia brigas. Porque os grandes aparentemente não conseguiam passar muito tempo sem brigar.

Mas isso nem sempre era algo ruim. Às vezes, era sinal de amizade, às vezes era realmente um sinal de inimizade.

Precisavam, contudo, ter cuidado. Alguns deles eram mentirosos, e, embora parecessem ser boas pessoas, sempre eram revelados ao longo da história. A dificuldade é que era muito, muito difícil saber quem era desse tipo, e quem não era. Então, a conclusão à qual todos os personagens chegaram – inclusive Milena, que era o mais distraído de todos – era de ter extremo cuidado, e não confiar em nem um deles sem saber sequer alguma coisa do indivíduo.

Respirando fundo, seguiram em frente, sempre juntos. Entraram na vila, e imediatamente se espantaram com o tamanho dos grandes. Conheceram alguns deles, perguntaram sobre Robert, e alguns tentaram ajudar, outros tentaram enganá-los. No fim, saíram da vila escondidos, e sem pista da benalha.
E assim foi a cada dia.

Dias tornaram-se semanas, depois meses e, embora já tivessem perdido a conta há muito tempo, eventualmente anos.

Algumas coisas mudaram dentro do grupo, mas no fim, continuavam unidos – embora também brigassem ocasionalmente, como os grandes. Na verdade, alguns deles estavam bastante parecidos com os grandes, e, quando o grupo entrava numa vila nova, havia menos e menos tentativas de enganá-los... Mas também havia menos e menos tentativas de ajudá-los.

Era bastante estranho aquilo, pelo menos no começo. Eventualmente, todos eles se tornaram grandes, para surpresa de todo o grupo, principalmente da raposa, que fora a primeira.

Porém, foram somente muitos, muitos, mas muitos anos depois, que eles finalmente acharam Robert.

E foi só então que entenderam que Robert sempre estivera com eles, e ela os salvara da única forma que ela podia.

Sorrindo, Milena entregou-lhe o livro.


A Elefanta


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