24 de agosto de 2013

Para ler: Confissões de um Jovem Romancista


Nesse sentido, devemos supor que algumas personagens de ficção adquirem um tipo de existência independente de suas partituras originais. Quantas pessoas que conhecem o destino de Anna Karienina leram o livro de Tolstói? E quantas ouviram falar dela, em vez disso, por meio de filmes e seriados de TV? Não sei a resposta exata, mas posso dizer com segurança que muitos personagens de ficção "vivem" fora da partitura que lhes deu existência, e se mudam para uma zona do universo que achamos muito difícil delimitar. Alguns até mesmo migram de texto pra texto, porque a imaginação coletiva, ao longo dos séculos, fez um investimento emocional neles, e os transformou em indivíduos "flutuantes".

Se está dando tudo certo em minha viagem (lembrando que deixei todas as postagens desse mês programadas enquanto bato perna pelo mundo...), enquanto vocês lêem essas linhas, estou em Florença, na Itália. Assim, nada mais justo que falar do meu amado e idolatrado Eco – já que segui mais ou menos o tema dos países por onde passava para escolher que livros resenhar esse mês.

Confissões de um Jovem Romancista é um pequeno livro de ensaios sobre temas de que Eco já falou em outros volumes (e talvez por isso eu tenha passado pela impressão de déjà vu mais de uma vez enquanto lia). Estão lá sua ‘receita para escrever romances’, suas questões de interpretação literária, seu amor puro e simples pela literatura.

O título é uma brincadeira com o fato de que Eco é um ‘jovem’ romancista, uma vez que só começou a escrever romances após os cinqüenta anos e ao publicar esse livro pela primeira vez, estava começando na carreira (como professor, ensaísta e crítico literário, ele já tinha bastante experiência na bagagem).

Li o volume de uma sentada só, rindo-me sozinha das ironias do autor especialmente em resposta a perguntas de jornalistas (“Como o senhor escreve seus romances?” “Da esquerda para a direita”). Admirei-me com algumas de suas referências (mas não fiquei surpresa quando ele começou a falar de Finnegans Wake... eu ainda lerei esse livro só para entender essa fixação do Eco), de como ele se estrutura para escrever (e povo acha que eu é que sou paranóica com pesquisa pré-história...) e descobri também que aquilo que chamo de ‘palavras cruzadas literárias’ tem um nome: chama-se ironia intertextual e metanarrativa.

Fiquei me sentindo extremamente pós-moderna quando vi a explicação dele sobre o assunto e como ele faz de propósito essas coisas exatamente como uma piscadela para seus leitores. Mais do que nunca, vou ficar me sentindo como se tivesse compartilhado uma piada secreta com meus autores favoritos toda vez que perceber uma dessas ironias intertextuais – especialmente agora que fiquei na cabeça com a imagem de que a interpretação de um texto é também um jogo entre autor e leitor.


Dos quatro capítulos do livro, o terceiro foi o mais ‘inédito’ para mim, em termos do que eu conheço sobre Eco – e foi também meu capítulo favorito. Ele explora aqui a questão de como nós, como leitores, nos deixamos levar pelo texto, por vezes incapazes de diferenciar fato de ficção: é o que acontece ao nos emocionarmos com a morte de Anna Karienina e Madame Bovary; é o efeito Werther do livro de Goethe (que é provavelmente uma das influências mais bizarras que a literatura já teve na História...), é o visitar roteiros que personagens fictícios fizeram, dizer “eu estive na cela de Edmond Dantès” (a cela e até o buraco cavado pelo abade Faria existem, e é bom lembrar que Dumas inspirou-se em fatos reais...) ou na farmácia em que Leopold Bloom comprou seu sabonete de limão. Paramos de pensar no texto que lemos, Eco escreve, e falamos dos personagens como se fossem gente real.

Aliás, essa é uma experiência que eu sempre tenho nas reuniões do clube do livro: os debates a que nos propomos nos fazem falar dos personagens como se os conhecêssemos em carne e osso – somos íntimos de seu cotidiano e ele são mais reais para nós do que autoridades e celebridades do nosso mundo.

É um livro de leitura rápida, mas muito gostosa – uma conversa de pé de alpendre com um escritor que, ainda que seja um jovem romancista, já começou pelo topo, com uma história e um estilo fascinantes; alguém que vale à pena ouvir, que nos convida o tempo todo ao debate, a ter nossas próprias idéias e nossas próprias interpretações.


A Coruja


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