30 de julho de 2013

Clube do Livro (Julho): A Faca Sutil

Encontrei loucura em toda parte, mas havia grãos de sabedoria em todos os casos de loucura. Sem dúvida havia muito mais sabedoria do que eu consegui reconhecer. A vida é dura, Sr. Scoresby, mas mesmo assim nos agarramos a ela.
Acho que vamos terminar lendo toda a trilogia do Pullman nessa temporada do Clube do Livro. Não que eu esteja reclamando: eu bem precisava de um motivo para reler essa obra-prima e uma de minhas séries de livros favoritas de todos os tempos.

Não há nada de supérfluo na narrativa que Pullman faz em Fronteiras do Universo - o segundo e terceiro volume da série não são apenas continuações caça-níqueis, mas histórias tão grandiosas quanto a que nos foi contada em A Bússola Dourada, que precisam ser contadas para que haja o glorioso deslinde final de A Luneta Âmbar.

Mas divago... vamos ao que interessa com o livro do mês do clube.

Ao princípio de A Faca Sutil temos a impressão de que essa história nada tem a ver com aquela contada em A Bússola Dourada. O mundo de Will Parry – o protagonista da vez – é o nosso mundo, a nossa realidade. Nada de daemons ou ursos de armadura: o problema aqui são os serviços sociais, um pai ausente e um filho que tenta fazer de tudo para não perder a mãe.

Nada de particularmente prodigioso... até Will encontrar uma janela no meio do ar; uma fenda entre mundos e pular para o outro lado seguindo um gato perdido... e ir parar em Cittàgazze, a cidade dos espectros, onde seu caminho acabará se cruzando, para o bem ou para o mal, com o de Lyra Belacqua.

Cittàgazze é uma cidade de pesadelo, embora um dia tenha sido uma vila notável, conhecida por seus artesãos... ao menos até que eles, com todo o seu enorme talento, acabassem por criar a Faca Sutil, um artefato capaz de cortar o próprio tecido da realidade.

A ideia era, realmente genial: abria-se novos mercados, novas possibilidades de adquirir matéria-prima, novos mundos inteiros a serem explorados a apenas um movimento de distância no ar.

Infelizmente, os homens e mulheres de Cittàgazze esqueceram-se de um pequeno detalhe: para cada ação, há uma reação, então, para cada janela para outro mundo deixada aberta, um espectro surge.

Mas o que cargas d’água é um espectro? Basicamente, é uma espécie de fantasma capaz de sugar aquilo que forma sua consciência, ou, quem sabe, sua alma. Apenas adultos são vítimas de tais criaturas, de tal forma que o mundo em que Will e Lyra se encontram transformou-se numa espécie de grande deserto em que bandos de crianças quase selvagens tentam se virar sozinhas, até chegarem a puberdade e serem elas mesmas, devoradas pelos espectros.

E aqui volta toda a discussão do Pó, que imperou no primeiro volume da série, porque é o alcance da puberdade que também torna definitiva a forma dos daemons - tudo está de alguma forma interligado.

Problema é que, enquanto Lyra e Will se conhecem e começam a fazer trocas culturais acerca de seus respectivos mundos, descobrimos afinal o grande plano de Lorde Asriel – que terminou o primeiro volume da série literalmente explodindo uma passagem de seu mundo para outro: o homem quer nada mais, nada menos que fazer guerra a Deus e a Igreja.

Asriel tem seus motivos para odiar a Autoridade – seu romance com Mrs. Coulter, sua subsequente queda da graça nas mãos do Magistério; toda a grande aventura que Lyra imaginou a princípio, mas que deixou mais mágoas e cicatrizes do que ela poderia imaginar, resultando em sua visão de que a igreja e a religião como um todo são terríveis amarras, cegas à realidade por seus dogmas.

E aqui começa o grande paralelo da história de Pullman com O Paraíso Perdido de Milton: a figura de Asriel é tão carismática e brilhante quanto a de Lúcifer; tanto que ele é capaz de comandar um exército de criaturas de vários mundos, incluindo anjos, em sua cruzada pessoal. Ainda que a narrativa se concentre nas duas crianças, que sejam raros os momentos em que Asriel apareça pessoalmente, quando isso ocorre, ele domina completamente a cena.

A trama cresce infinitamente nesse livro – compreendemos afinal o verdadeiro papel de Lyra nas profecias que já ouvíamos desde o primeiro volume; somos influenciados pela firme devoção de Mrs. Coulter atrás da filha (ainda que seus propósitos continuem bastante obscuros), e pela figura majestosa e terrível de Asriel preparando-se para a batalha, ao mesmo tempo em que nos impressionamos com o caráter e a perseverança de Will.

Will e Lyra são quase que completamente opostos, mas se complementam de uma forma simplesmente genial. Todos os personagens de Pullman nessa trilogia são fantásticos, mas é sobre os ombros dos dois que realmente repousa a responsabilidade da história e eles são heróis críveis, humanos, marcados por suas tragédias pessoais e ainda assim, duas crianças de pouco mais de dez anos, inocentes de tudo o que está acontecendo rápido demais ao seu redor.

A Lyra é passional, imaginativa, independente; ao passo que Will é responsável, soturno; ambos têm uma carga muito pesada para carregar, mas Lyra vê tudo como uma grande aventura, enquanto Will tem uma consciência mais dolorosa de suas próprias peripécias.

Eles não apenas funcionam juntos, mas são, ambos, apaixonantes. E por isso é que terminamos por mergulhar completamente na história, por isso que terminamos estupidamente investidos em sua epopeia ao ponto de terminarmos com corações partidos frente à carga que eles têm de suportar.

Mas ainda estamos longe do final da história... e a serpente acaba de se infiltrar no paraíso...


A Coruja


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