21 de abril de 2012

Do Gênesis ao Apocalipse: Odisséia


Curiosamente, nesses primeiros meses dessa coluna, seguimos mais ou menos de perto o Antigo Testamento: assistimos a Criação do mundo, cruzamos com sobreviventes do Dilúvio e caminhamos em meio ao Êxodo. Na quarta parada de nossa turnê pela história da civilização, contudo, vamos levantar âncoras e partir por mares biblicamente não navegados.

De quantos seres respiram e rastejam sobre o solo, o mais fraco que a terra cria é o homem, pois não pensa que venha a sofrer qualquer mal no futuro, enquanto os deuses velam por sua felicidade e seus joelhos são flexíveis; mas, quando os Bem-aventurados lhe enviam reveses, resigna-se, mas suporta-os contra vontade. O espírito dos homens sobre a terra conforma-se com os dias diversos, que o pai dos homens e dos deuses lhes destina.
Ulisses – e aqui confesso que me acostumei com a forma latinizada e não consigo pensar nele como Odisseu – foi, talvez uma de minhas primeiras paixonites literárias. Ainda hoje é, para ser sincera. Sua Odisséia também foi meu primeiro poema épico e, devo observar, não foi exatamente um passeio no parque.

Ganhei esse livro do dono da antiga Livro 7, no meu aniversário de doze anos – à mesma época em que minha mãe me deu Dom Quixote e eu apanhei do Eco. Minha primeira leitura foi terminada por pura teimosia – eu não tinha nem a compreensão nem o vocabulário para me beneficiar de tudo que Homero oferecia – mas mesmo estranhando a narrativa cadenciada em versos, não pude evitar ser fisgada pela história.

Eu já conhecia um pouco da história do Ulisses por causa do Lobato – como sempre, vou e volto mas sempre termino diante de Monteiro Lobato de novo... – o suficiente para conseguir acompanhar pelo contexto aquilo e que às vezes me perdia. E eu não estava realmente preocupada com o peso que aquela obra tinha na cultura ocidental, mas com as aventuras de tirar o fôlego que o soberano de Ítaca vivia.

Li a Ilíada também, mas confesso que ela não me apaixona tanto quando a Odisséia. Entre Aquiles, Páris e Helena, aquilo é um festival de egos e narcisistas. Gosto do Heitor e, claro, Ulisses rouba a cena no que ele é o verdadeiro responsável pelo fim da guerra – mas a tensão junto aos portões de Tróia esta longe de ter o mesmo gosto que a longa jornada de Ulisses de volta para casa.


E como não poderia? Como não segurar o fôlego e sentir o coração acelerar quando você está diante do desafio de Cila e Caríbdis, viajando por um estreito que sabidamente é mortal; como não se sentir fascinado com a teimosia e sagacidade no esquema para ouvir as sereias; como não torcer por uma criatura que de novo e de novo desafia deuses e as situações mais extremas confiando apenas em sua coragem e sua inteligência?

Essa é a palavra-chave, esse é o ponto que me fez virar fã de Ulisses – e da inteira família, porque convenhamos, não é coincidência que eles sejam favoritos de Palas, a deusa da sabedoria – ele não é apenas um bravo guerreiro pronto a se jogar por impulso no frenesi da batalha: ele é um estrategista acima de tudo e onde todos os outros (e a força bruta) falham, Ulisses triunfa.

A Odisséia foi durante muitos anos meu guia de viagens favorito e talvez um dia eu ainda me arrisque a sair com um mapa procurando os rastros daquele mundo em que feiticeiras transformam humanos em porcos, uma rainha fiel fia durante o dia e desfaz seu trabalho à noite enquanto espera, sempre vigilante, e gigantes de um olho só planejam te transformar em jantar.

Um mundo em que deuses conferenciam em torno de seus mortais favoritos – e são surpreendidos pela capacidade desses mortais em enfrentar os obstáculos que põem no caminho deles. Em que mendigos se revelam reis e heróis aceitam sua humanidade e perseveram a despeito de todas as dificuldades em busca do que realmente importa.

Ler a Odisséia - especialmente numa sociedade fast food em que dificilmente damos tempo para que a informação seja digerida e estamos sempre correndo para a próxima ‘refeição’ – talvez parece um desafio grande demais (uma odisséia, para usar bem o termo). Ela é uma daquelas histórias que todos sabemos o fim, meio que por osmose, através daquilo que chamamos de ‘imaginário coletivo’ – e, se já sei o fim de alguma coisa, para que perder tempo quando posso estar fazendo algo de mais interessante?

Mas a verdade é que não dá para ficar muito mais interessante que a longa e épica jornada de Ulisses. Esqueça por um momento que esse é um dos livros mais importantes da cultura ocidental e que há milênios que se discute o assunto, que existem inteiros campos de estudos devotados à pesquisa dos mínimos detalhes... Em vez disso, permita-se o prazer de perder numa das aventuras mais brilhantes da literatura.

Ao final das contas, um clássico não é um clássico porque é incompreensível (não importa o que digam alguns críticos)... mas porque em todo esse tempo desde que foi escrito, ele continua sendo capaz de lhe dizer algo, de te encantar e de te roubar o fôlego com um turno de frase e um aceno de imaginação.


A Coruja


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2 comentários:

  1. Não o li, mas entrou na minha lista. parabéns pela resenha.

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    Respostas
    1. Fico feliz que tenha gostado e torço para que goste ainda mais do livro ;)

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