30 de novembro de 2011

Para ler: O Senhor da Foice

Isso faz parte de um dia de trabalho. Ou faria, se aqui existissem dias.

Click, click, a figura sombria desloca-se com paciência entre as fileiras.

E pára.

E hesita.

Há um pequeno cronômetro dourado, não muito maior que um relógio de pulso.

Ontem ele não estava ali, ou não teria estado se existissem ontens aqui.

Dedos ossudos se fecham em torno dele e o erguem contra a luz.

Há um nome, em letras maiúsculas pequenas.

O nome é MORTE.

Morte pôs o cronômetro de volta e depois o pegou de novo. As areias do tempo se derramavam. Experimentou virá-lo de cabeça para baixo, só pra testar. A areia continuou fluindo, mas para cima. Ele realmente não esperava que acontecesse algo diferente.

Aquilo significava que, mesmo se amanhãs pudessem existir aqui, não haveria amanhã. Não mais.

Houve um movimento no ar, atrás dele.

Morte virou-se devagar e dirigiu-se ao vulto, que se movia de modo indeterminado e indeciso na escuridão.

— POR QUÊ?

O vulto lhe disse por quê.

— MAS ISSO... NÃO ESTÁ CERTO.

O vulto lhe disse que "Não, estava certo". Nem um músculo se moveu no rosto de Morte, porque ele não tinha nenhum.

— EU RECORREREI.

O vulto lhe disse que ele deveria saber que não havia recurso. Nunca recurso algum. Nunca recurso algum. Morte parou para pensar nisso e depois disse:

— SEMPRE CUMPRI MEU DEVER COMO ME PARECEU ADEQUADO. O vulto aproximou-se flutuando. Ele lembrava vagamente um monge encapuzado com um manto cinza.

Ele lhe disse "Nós sabemos. É por isso que o deixaremos ficar com o cavalo".
Quando li O Senhor da Foice pela primeira vez, coincidentemente tinha recém-terminado As Intermitências da Morte, do Saramago e de imediato fiz a referência cruzada entre os dois. Ambos tratam de situações em que a Morte, como uma entidade antropomórfica decide deixar – ou é impedida – de trabalhar.

A princípio, todos comemoram a novidade – afinal, viver para sempre é uma ânsia que quase todo mundo possui. Claro que não demora muito para que a humanidade se aperceba de que viver para sempre – especialmente quando você está doente, sofrendo, com dor, e a artrose não te deixa caminhar – não é exatamente essa coca-cola toda.

Pratchett leva essa premissa bem longe. Aqui, vamos conhecer os Auditores da Realidade, responsáveis por observar Discworld e se certificar de que tudo anda nos conformes. E, uma vez que Morte tem desenvolvido uma personalidade, os auditores chegam à conclusão de que ele não é mais capaz de cumprir seus deveres corretamente.

Destarte, Morte é ‘aposentado’ compulsoriamente e enviado para viver como todas as outras criaturas, assumindo o nome de Bill Porta e conseguindo emprego na fazenda da senhorita Flitworth – que nunca antes viu alguém trabalhar tão bem com uma foice.

A destituição de Morte causa a criação de várias entidades com as mesmas funções para outras espécies – e aqui vemos surgir Morte dos Ratos e Morte das Pulgas que se tornarão mais tarde companheiros contumazes do Morte que todos conhecemos e... hã... amamos.

Os humanos, porém, precisam de mais tempo ara formar sua própria idéia de morte e assim eles ficam com suas existências em “suspenso” – o que resultará em situações como a do Clube do Novo Começo, um grupo que luta pelos direitos dos mortos-vivos e que é liderado por um zumbi.

Coisas que só o Pratchett faz por você...

Para completar, há algo estranho acontecendo em Ankh-Morpork, relacionado a uma forma de vida parasita que devora cidades, nascendo de ovos que lembram globos de vidro, evoluindo para carrinhos de compra e crescendo para se tornar o terrível Shopping Center.

Então a nova Morte dos humanos finalmente fica pronta e o primeiro nome de sua lista é exatamente Bill Porta, seu antecessor. O que virá desse confronto é algo que vocês terão de ler por si mesmos – mas que fala muito sobre as noções de Pratchett sobre morte e humanidade, com humor, mas também com muita propriedade.

Esse é um dos principais motivos pelos quais Pratchett se tornou um dos meus autores favoritos de todos os tempos: ele é capaz de trabalhar em vários níveis de significado e interpretação, usando de um humor a princípio fácil, partindo para uma ironia mais sutil e terminando com algumas verdades que são como um tapa na cara da gente...


A Coruja


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