20 de abril de 2011

Para ler: A Megera Domada


PETRUCCHIO — Depressa, pelo céu! Vamos à casa de vosso pai, de novo. Oh Deus bondoso! como brilha no céu a lua amiga!

CATARINA — Lua? Isto é sol; não há luar ainda.

PETRUCCHIO — Digo que é a lua que tão claro brilha.

CATARINA — É o sol, bem vejo, que tão claro brilha.

PETRUCCHIO — Pois pelo filho de meu pai, eu mesmo, tem de ser lua ou estrela, ou o que eu quiser, antes de à casa de teu pai nós irmos. Recolhei os cavalos! Contrariado de novo! Contrariado sempre e sempre!

HORTÊNSIO — Oh! concordai com ele; do contrário, não partiremos nunca.

CATARINA — Por obséquio, já que chegamos até aqui, sigamos até o fim, seja lua, ou sol, ou quanto bem entenderdes. Caso resolvais dar-lhe o nome de vela, doravante para mim será isso.

PETRUCCHIO — É lua, disse.

CATARINA — Vejo que é lua, mesmo.

PETRUCCHIO — Estás mentindo pois é o sol abençoado.

CATARINA — Deus bendito! pois é o sol abençoado! Mas já deixa de ser o sol, quando negardes isso. Muda-se a lua como vosso espírito; será o que quiserdes, e isso mesmo ficará sendo para Catarina.

William Shakespeare – A Megera Domada

De todas as peças do bardo, sempre torci o nariz para A Megera Domada - a idéia dessa peça ia de encontro às minhas mais profundas sensibilidades femininas (e feministas). Mas o Dé está desde o ano passado insistindo em ler e comentar esse livro, de forma que acabei dando o braço a torcer. Fui procurar o livro na estante...

...e descobri que só tinha adaptações do tipo paradidático. Pior que isso: quando catei o original na livraria e folheei as primeiras páginas, cheguei à mui chocante conclusão de que JAMAIS TINHA LIDO O BENDITO!

“Pronto. Desonra. Desonra para a tua família inteira. Toma nota: desonra para você, desonra para tua vaca....”

Hã... o que Mulan tem a ver com o assunto mesmo? Ah, sim. Bem, é uma grande vergonha para mim admitir que não tinha lido A Megera Domada e ainda assim o tinha riscado da minha lista de “peças de Shakespeare para ler antes de morrer” (outro dos meus projetos de vida). Assim, só me restava reparar meu erro: li a peça e foi logo em inglês, para poder me penitenciar (experimenta ler Shakespeare em inglês para entender do que estou falando...)

Ok, então... eu continuo não gostando do Petrucchio. Não gosto da forma mercenária com que ele escolhe sua noiva e não gosto do tratamento que ele dá a Catarina. Mas ao menos posso hoje entender bem mais a Cata e o verdadeiro sentido da peça.

Então... Batista, um rico senhor de Pádua, tem duas filhas: Bianca, a caçula, é linda, meiga, doce e obediente... o exato oposto da irmã, Catarina, cujo epíteto carinhoso de megera resume tudo o que se há para dizer sobre a jovem.

Bianca é sempre seguida por um cortejo de pretendentes. O problema é que seu pai só permite que a caçula se case quando a mais velha estiver encaminhada – e nenhum homem em sã consciência, a despeito da beleza ou do dote da moça, está interessado em Catarina.

Até que chega a cidade Petrucchio, ele mesmo nem de longe um primor de gentileza. Petrucchio é amigo de Hortêncio, um dos pretendentes de Bianca. Tendo seu pai morrido recentemente, recebeu sua devida herança e está agora atrás de uma esposa – uma, de preferência, que venha com os cofres cheios.

Ao saber do dote de Catarina, ele decide que ela dará para o gasto e se põe a provocá-la terrivelmente, contrariando tudo o que ela diz. Aparentemente, Catarina cai de amores pelo neanderthal logo de cara, porque a despeito de toda a sua fúria, ela nada diz contra o casamento e o único momento em que se desespera com toda a situação é justamente quando o noivo se atrasa para a cerimônia.

Há o enredo secundário da confusão causada por Lucêncio, outro nobre jovem (só tem nobres nessa história...) que se disfarçou de pobre professor para aproximar-se de Bianca – mas ele não guarda tanto interesse quanto o primeiro. Na verdade, A Megera Domada são várias histórias dentro de uma história: a megera é uma peça encenada no meio de uma brincadeira que um lorde que acaba de voltar da caça prega num bêbado que encontra na estalagem.

Aliás, é uma pena que não tenhamos o deslinde da peça pregada em Sly; eu bem gostaria de ver o que ele faria quando acordasse novamente pobre.

O caso é... Petrucchio e Catarina se casam e ele continua com sua tortura – não a deixa comer ou dormir, a pretexto do amor que sente por ela: a comida está queimada, os travesseiros, muito duros e para sua querida Cata, apenas o melhor é permitido.

Afinal, se tudo o que faz, faz sob o argumento de amá-la, não há como contradizer isso.

E é então que Catarina concorda com ele. Se Petrucchio quiser que o sol do meio dia seja lua, lua ele será. Ao concordar com o marido, ela assume o controle, invertendo o jogo e colocando a estratégia de Petrucchio contra ele mesmo: se ela concorda, ele nada pode negar a ela.

E eis a essência da lição de Catarina, a megera: aconselhando as mulheres a fingir obedecer, ela as ensina como comandar.

Conclusão da história: continuo não sendo uma grande fã dessa específica peça – embora seja da opinião de que é uma das que melhor se presta a adaptações, até porque não me lembro de uma adaptação dessa história de que não tenha gostado – mas posso entendê-la melhor agora e falar com conhecimento de causa sobre o assunto.

Ou, pelo menos, posso dizer que realmente já li o livro...



A Coruja


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