23 de dezembro de 2010

Clube do Livro (Dezembro) - O Natal de Poirot

Empurraram e esforçaram-se em vão. Depois foram buscar um banco de carvalho e utilizaram-no como um aríete. Os gonzos cederam, por fim, e a pesada porta abriu-se, com um último estremecimento.

Durante um minuto ficaram imóveis, apertados uns contra os outros, a olhar. Nunca mais nenhum deles esqueceria o que viram.

Houvera, tudo o indicava, uma luta tremenda. Viam-se móveis pesados derrubados, jarras de porcela- na esulhaçadas no chão e, no meio do tapete, defronte da lareira crepitante, jazia Simeon Lee, numa grande poça de sangue. Aliás, havia salpicos de sangue por todo o lado. O quarto parecia um matadouro.

Ouviu-se um suspiro longo e trêmulo e depois duas vozes falaram sucessivamente. Por singular coincidência, ambas proferiram citações.

David Lee mumurou:

Os moinhos de Deus moem devagar...

E a voz de Lydia acrescentou, num sussurro trêmulo:

Quem pensaria que o velho tinha tanto sangue em si?


Agatha Christie - O Natal de Poirot

O quê, exatamente, faz uma boa história policial? O mistério ou crime a ser desvendado? A personalidade pitoresca de quem seja o detetive? Os suspeitos?

Tudo isso, claro, entra na receita. Mas há um elemento primordial – ao menos, em minha opinião – que transforma uma boa história de mistério numa grande e envolvente trama: a ambigüidade, dualidade da natureza humana.

É exatamente nessa natureza naturalmente ambígua que a Agatha Christie explora tão bem em suas histórias – e que faz com que ela seja uma das minhas autoras favoritas do gênero. Gosto muito do Sherlock, não nego, mas sinto falta desse elemento mais humano nas histórias de Sir Arthur Conan Doyle.

Sherlock Holmes investiga seu caso através das evidências, das pistas deixadas para trás, resolvendo tudo apenas com seu intelecto. Vamos encarar os fatos, emocionalmente, ele é muito pouco desenvolvido.

Poirot tem uma personalidade mais humana, um humor menos violento (convenhamos, Sherlock dá umas patadas tristes em Watson). Ele é um personagem divertido, mesmo involuntariamente. Fisicamente, é meio ridículo, com seus longos bigodes dos quais ele cuida quase obsessivamente e sua careca “cabeça em formato de ovo”.

Poirot é também um ator e sabe se impor em cena, sabe representar ao contar o que aconteceu, como chegou às suas conclusões. Tanto quanto os seus companheiros de investigação, ficamos paralisados, eletrizados, esperando suas explicações.

Como Poirot bem observa ao longo de todo O Natal de Poirot, mais importante, talvez, que os fatos, é o caráter das pessoas envolvidas na história. É a forma como Simeon Lee, assassinado num verdadeiro “ritual de sangue” (como várias vezes observado ao longo da história) se portou ao longo de sua vida – tanto na juventude quanto na velhice. São as relações entre os irmãos Lee, as cunhadas, Pilar e Stephen, e também entre os empregados da casa.

Virtualmente todo mundo envolvido na história tinha motivos para matar o velho que, ao final das contas, não era nenhuma flor que se cheirasse. Assim, pense num cara sádico, misantropo, um verdadeiro sociopata. Não, não o Scrooge, este é Simeon Lee.

Confesso que fiquei totalmente surpresa com o final da história – nem em um milhão de anos eu acertaria quem era o assassino. Claro que eu não tinha os elementos visuais para trabalhar minhas conjecturas; não sabia como eram fisicamente todos os presentes à macabra ceia natalina dos Lee, exceto por Stephen e Harry, cujas semelhanças são repetidas à exaustão.

Bem, ao menos esse meu palpite, acertei...

Falar muito mais sobre o livro é arriscado, porque não quero estragar a leitura de ninguém – e, vamos convir, é muito mais divertido ler um romance policial desse tipo quando você não sabe o final e pode ficar tecendo suas próprias teorias.



A Coruja


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2 comentários:

  1. O exemplar que eu solicitei no Trocando Livros já chegou, e devo comerçar a lê-lo hoje... Mal posso esperar!

    O problema que já sei que vai acontecer é que ler esse livro vai me desencadear o bendito "Efeito Agatha Christie": aquela vontade IRRESISTÍVEL de reler todos (ou quase todos) os livros!

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  2. Excelente resenha, Lulu!

    Quase li este livro para o desafio, no mês do romance policial, mas por falta de tempo acabei trocando por algo mais curto. Agora me atiçou (de novo) a vontade de lê-lo...

    Gostei da sua análise da personalidade de Poirot e Holmes, é bem assim. Os egos de ambos são assombrosos, mas Poirot tem empatia e tato social, enquanto Holmes ignora completamente a sensibilidade alheia.

    Parabéns pela resenha, beijos e um Feliz Natal!

    (PS: fiquei assombrada com a quantidade de livros que você leu este ano; que beleza!)

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